Por Leonardo W. Soares de Melo
Parte I: sobre como ‘sobrou’ para mim
Quarta-feira, 14 de abril de 2021, por volta de 8h30 da manhã. Ponta Grossa, Paraná, Brasil. Das entrelinhas do meu quarto, me sentei à frente do notebook para participar de mais um encontro semanal de nosso grupo de pesquisa – GECCE, para os íntimos. Tempos estranhos esses, todos distantes e ao mesmo tempo plataformizados para praticar as divagações costumeiras. Talvez ainda nos acostumemos com essa dinâmica. Quem sabe nem tenhamos tempo.
Por motivos ‘internéticos’, cheguei um pouco atrasado ao meet nesse dia. A turma já estava reunida quando acessei a sala, com exceção de nossos “filósofos residentes”. Todos os colegas pareciam atentos aos habituais recados iniciais do professor, que nesse dia reservara boa parte das palavras para explanar sobre os planos sequentes da revista. Apesar da longitude cibernética, pude notar seu entusiasmo com o projeto, sobretudo com a seção de entrevistas em curso. No catálogo de nosso talk show já constam figuras como a professora Maria Lúcia Wortmann e o professor Alfredo da Veiga-Neto, ambos referências dos Estudos Culturais no Brasil. Isso por si só é o suficiente para justificar qualquer medida de empolgação.
Após os recados iniciais, o professor indagou sobre quem seria responsável pela mediação do debate. Silenciamos. Pude de longe partilhar da hesitação coletiva em se prontificar para a função, pois o nomeado seria também responsável pela produção textual dos ‘escrutínios’, de maneira a narrar o andamento das discussões matinais para publicação em nosso primeiro número. Os leitores atentos devem agora ter ligado os pontos e percebido que essa missão sobrou para mim. No entanto, ressalto que esse processo foi um tanto sinuoso. Se não pude escapar desse spoiler, deixem-me explicar como aconteceu a nomeação.
Parte II: a atribuição
No momento em que questionou sobre quem seria o condutor das discussões, o professor foi incisivo em lembrar que essa escolha já deveria ter sido feita previamente. A valer, não cumprimos o combinado. Nesse instante, foi como se eu começasse a ouvir as batidas cardiais do colega responsável pela seção dos escrutínios. Ele havia arriscado um convite tímido em nosso grupo de WhatsApp dois dias antes do nosso encontro, mas não obteve respostas afirmativas. Foi copiosamente ignorado. Decerto já estava a consentir a tarefa de dirigir novamente as tarefas da manhã, dada nossa falta de cooperação.
Então o professor tomou a iniciativa de sair da ‘sala’. Na cabeça dele, sua presença poderia estar pressionando a tomada de iniciativa por explicações ou desculpas esfarrapadas. Parece-me que ele tinha certa razão, pois sua ausência gerou desdobramentos. Uma colega tomou a palavra e sugeriu um mal-entendido. Ela alegou ter compreendido que a obrigação por produzir os relatos semanais, em um primeiro momento, ficaria a cargo de quem não estivesse acumulando mais de uma função na revista. Assim como eu, ela é intendente da elaboração do layout de nosso magazine. Corroborei sua impressão e combinamos esclarecer isso ao professor quando ele voltasse. E ele logo voltou.
Explicamos nossa percepção do ocorrido, mas sem sucesso. O professor não engoliu. Ressaltou que todos estão ocupados e ninguém está à parte dos trabalhos. De fato, é provável que nossa alegação estivesse carregada de conveniência, pois praticamente todos do grupo estavam atrelados a mais de um setor. Foi como se estivéssemos esperando pela iniciativa de um fantasma, mas esquecemos que no GECCE não há sótão para os espectros se esconderem.
Movido pela ansiedade mediante a falta de conclusões, me propus ao posto. Confesso que o fiz quase como aquele sujeito que oferece um pedaço do sanduíche só por consideração, esperando a negação cortês da parte do ofertado. Mas então o professor resolveu ‘morder o sanduíche’. Fui designado. ‘Sobrou’ para mim. Mal sabia eu que a incumbência, ao final da manhã, significaria uma experiência ardente de estudos culturais, marcante para a sequência de minha carreira acadêmica.
Permitam-me explicar o ocorrido.
Parte III: Thompson e o ‘meu’ tal empirismo
Assumida a função, fervi os motores para pensar em um modo de começar o debate. Lembro-me de estar aflito enquanto passava os olhos por minhas desprendidas anotações, tentando encontrar um tópico que pudesse suscitar o interesse de todos. A decisão deveria ser tomada o mais rápido possível, pois o silêncio da espera me consumira: os colegas aguardavam minha determinação.
Tracei então uma estratégia de transbordar o texto para questões convergentes ao grupo – ou pelo menos a nosso curso de Pós-Graduação. Esqueci de mencionar, mas o texto sobre o qual nos debruçávamos era uma obra de Edward Palmer Thompson: “A formação da classe operária inglesa”, mais especificamente a primeira parte do volume II. Admito que, em um primeiro momento, ele soou um tanto frio aos meus interesses habituais de leitura. Por isso, empreendi a hipótese de movimentar a manhã com assuntos que pudessem aproximar o livro de pautas ligadas às Ciências. Os leitores acabarão descobrindo o quão prepotente foi esse plano.
Iniciei minha explanação mencionando uma problemática suscitada por Thompson, ligada ao que ele chamara de ‘ortodoxia empirista’. Em suas considerações, o autor sugeriu que alguns intelectuais dessa ortodoxia se reconheciam como detentores cabais de evidências incontroversas sobre o período da Revolução Industrial. De acordo com Thompson (1987), isso acabou produzindo atitudes normativas de parte dessa ortodoxia diante do debate acadêmico, o que difundiu uma visão generalista e romantizada do período.
Em oposição a essa hipótese, Thompson (1987) buscava destacar a Revolução Industrial como um tempo de intensa exploração, insegurança e miséria, ainda que as evidências ortodoxas indicassem para a pujança econômica desse ciclo. Nesse sentido, o argumento de Thompson me pareceu denunciar uma espécie de moralismo interditor em relação a esse empirismo ortodoxo, que se caracterizava por utilizar o peso das evidências para sustentar visões de mundo supostamente neutras e singulares.
Bem, sei que fui longe na exposição, mas a questão das evidências me pareceu produtiva para aproximar o texto das Ciências. Minha proposição foi a seguinte: poderíamos ponderar uma espécie de empirismo ortodoxo também em âmbitos científicos de ensino? Evidente dizer que, ao sugestionar a pergunta, eu já havia arquitetado em meu subconsciente uma resposta imediata ao problema, pois em minhas memórias pulsam as teses sociológicas de Ludwik Fleck, Paul Feyerabend e Bruno Latour – apesar do curioso interesse que insisto em manter pelo realismo popperiano. O problema é que, naquele momento, eu não havia me dado conta desse detalhe, pois acreditava estar tecendo uma divagação frutífera para todo o grupo.
Premeditadamente ou não, o professor embarcou em meus devaneios. À companhia de outro colega, nós três aprofundamos a questão do empirismo e elucubramos um certame para pleitear quem a esmiuçava melhor. Como em um jogo de futebol em campo encharcado, cada um procurava levar a bola para o canto em que se sentia mais à vontade, de maneira a espremer as ideias em busca de comentários convergentes. Não posso dizer que não se tratou de um momento divertido, mas a questão é que nem todos pareciam se entreter com a partida.
Incomodado com a situação e em meio à sugestão de realizar um intervalo, mencionei que gostaria de ouvir mais pessoas quando voltássemos. Todos aderiram à pausa e desligaram suas câmeras e microfones para o break. Nesse momento já havia passado um terço da manhã.
Parte IV: A ficha caiu
Tomei um copo de café, daninhei com Sol, a cachorrinha aqui de casa, e matutei sobre alternativas para sofisticar a mediação do debate. Algumas ideias surgiram, como pinçar frases literais do texto, mas nada lá muito convincente. Assim mesmo, sabia que deveria propor uma dinâmica diferente, pois não estava satisfeito com meu ‘comando’. Dez minutos após café e reflexão, retornei ao meet para a nova rodada de conversas.
Na sala virtual, não precisei mencionar o desconforto com a falta de mobilização coletiva diante de minhas proposições, pois o professor retornou com a mesma sensação. Indagou os colegas se eles estavam achando o texto complicado, recebendo então resposta positiva – inclusive minha, mentalmente. As alegações versaram sobre a leitura ser de difícil contextualização, e que isso dificultava o acompanhamento do fluxo das discussões. A linguagem hermética do autor também foi citada como agravante. A hipótese de pouca proximidade do texto com questões científicas me passou pela cabeça, mas não me senti seguro para expor o argumento.
Foi então que o professor sugeriu uma perspectiva: o entrave poderia estar ligado às diferentes dinâmicas que cada um arregimenta para assimilar o texto. Ora, se as bagagens teóricas são diferentes e diversas, parece coerente ponderar que cada sujeito vai aproximar o texto de seu próprio repertório. Uns mais especificamente, outros mais contextualmente, mas parece incontestável presumir que um texto nunca fala por si.
Nesse segundo, um estralo me acometeu. “Fui pego no pulo”, pensei. O culpado era eu. Não totalmente, é verdade, mas percebi meu delito e resolvi me sentar no banco dos réus. Depreendi minha sentença com base no seguinte raciocínio: se é verdade que os processos de apropriação dos textos são idiossincráticos; e se é verdade que alguns colegas alegaram dificuldades em aproximar o texto das discussões; logo, sendo eu o responsável pela mediação do debate, compreendi que a causa estava no preâmbulo, pois eu mesmo compeli as condições de posse. Procurei tanto inventar circunstâncias para integrar o texto às Ciências, que não me dei conta de que, assim, quem se aproximava do texto era eu. Caí no conto da ortodoxia e inventei meu próprio empirismo.
Parte V: fui engolido pelo texto
Depois de meu lampejo, as discussões prosseguiram. Não fechamos a questão dos entraves de leitura, deixando-a em suspensão. De minha parte, sugeri aproveitarmos um tópico mais abrangente e engatado ao texto: a questão da exploração. Aliás, esse vocábulo intitulava o subcapítulo da leitura. Projetei isso como uma possibilidade de ampliação das exposições para questões peculiares a cada um. Além disso, decidi interferir menos nas falas, com o intuito de não exagerar nas “palestrinhas”.
Notei que todos passaram a se expor com mais confiança a partir desse ponto. Inclusive, questões que eu empreendi trazer ao debate, como as Ciências e o próprio empirismo, acabaram aparecendo espontaneamente. Não sei se por conta da mudança na dinâmica, ou da fala do professor, ou da iniciativa de cada um, ou da proximidade com o horário de almoço, mas a situação havia mudado. Bem, na verdade, pouco importava o motivo, pois eu já havia aprendido uma lição valiosa.
Em similitude à denúncia de Thompson (1987) aos empiristas ortodoxos, descobri que eu também tinha perdido o sentido global do processo. Tratei questões particulares como universais e acabei me afastando do grupo, em aproximação a mim mesmo. Tencionei transbordar o texto e acabei sendo abduzido por ele. Com isso, aprendi que a rigidez de um coletivo é tão intensa quanto sua parte mais fraca: basta uma pedra no caminho para bambolear toda uma conformação. Ao mesmo tempo, aprendi que o ‘fazer-se’ de um grupo nunca pode ser estritamente determinado por uma intermediação. Entre determinismos e indeterminismos, fui devorado pelas contingências.
Parte VI: A questão das médias e o encerramento do livro
No dia 28 de abril, quinze dias depois, nos reunimos novamente para a sequência das discussões. Quando cheguei ao meet nesse dia, encontrei-me diante do problema de como esconder a bagunça de meu quarto. Nem tanto por descuido na limpeza, mas o fundo de minha escrivaninha estava tomada por algumas caixas e tranqueiras que eu não tinha outro lugar para deixar. Como não queria revelar minha falta de organização, optei pela alternativa de alterar o plano de fundo da imagem. Escolhi a opção menos extravagante às minhas vistas e acessei a sala para mediar o encontro do dia.
Nessa data, eu havia planejado uma estratégia de condução diferente da semana anterior. Minha intenção era não me esquivar tanto do texto, de modo a não deslocar o papo para questões convenientes apenas a mim. Ao mesmo tempo, sabia que deveria manter certo comando sobre as pautas organizadas, pois seria impossível fugir das relações de poder atreladas à responsabilidade de gerência atribuída. Meu desafio era tornar essa autoridade produtiva para as discussões, e essa inquietação me moveu para iniciar a atividade. Entre brincadeiras sobre meu plano de fundo e a ânsia por dirigir a reunião, comecei.
Minha pauta inicial foi a questão das médias. Sobre isso, Thompson (1987) esmiuçou alguns problemas nos processos de obtenção e abordagem dos dados pelas pesquisas sobre a época. Seu argumento foi o seguinte: a generalização das diferenças das classes trabalhadoras, motivada pelo uso das médias para sua mensuração estatística, poderia esconder peculiaridades e injustiças relevantes de cada um desses grupos. Nesse caso, para o autor, isso poderia explicar a visão romantizada de determinadas perspectivas econômicas e sociológicas sobre o período.
De maneira diferente em relação à semana anterior, essa tentativa de não me desprender do texto para abordar uma questão específica pareceu ter funcionado. Minha intenção de debater sobre as similitudes entre o texto e os contextos das Ciências acabou se cumprindo naturalmente, sem que eu precisasse forçar uma pauta de maneira irrestrita.
Empolguei-me com a dinâmica das discussões e coloquei outra questão sobre os movimentos sindicais. Nesse ponto, indaguei os colegas sobre suas visões em relação a esses movimentos, de modo que pudessem denotar semelhanças e assimetrias entre os movimentos atuais e a maneira como Thompson descreveu a formação dos sindicatos na Inglaterra do século XIX. Essa questão foi bastante produtiva e notei engajamento nos argumentos de alguns colegas ao comentar o assunto. Percebi que eu detinha diversas impressões superficiais sobre os movimentos sindicais, seja de um ponto de vista da estigmatização leviana por parte de certos grupos midiáticos, seja da possibilidade perigosa de idealização desses coletivos.
Não pretendo esgotar o leitor sobre como os debates se desenrolaram. O que posso testemunhar para encerrar esta narração foi sobre como a experiência de mediação dessas discussões foi marcante em diversos sentidos. Aprendi a ouvir mais do que unicamente propor. Superei a barreira da leitura conveniente e enfrentei a robustez de uma obra fundacional dos Estudos Culturais. Compreendi as contingências da condução de um debate, que estão nos espaços entre determinismos e liberdade mais do que em receitas de boas práticas de comando. Entendi a realidade em movimento em nosso grupo e assimilei a produtividade em acompanhar seus deslocamentos, em detrimento das intenções de dominação. Fui tragado pela obra de Thompson e sinto que saí mais hábil dela para meus exercícios futuros. Experiência viva de estudos culturais.
Referência:
THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa: A maldição de Adão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
Comentários