Por: Cristine Lois Coleti Sierra
Era final de 2003, passei semanas ouvindo na rádio que teria um show d’Os Paralamas do Sucesso na praia. Mas eu, que não tinha nem idade para viajar sozinha e muito menos dinheiro para ingresso e passagens, fiquei só amargando a vontade de ir. Faltando três dias para o show, anunciaram que haveria um concurso valendo um kit da banda e ingressos para o show na praia. Era a minha chance de descolar os ingressos e, assim, ficaria mais fácil convencer minha mãe de me levar para lá. O sorteio era simples: precisava ligar para a emissora e gravar uma mensagem falando porque merecia ganhar os ingressos e, caso fosse selecionado, era preciso acertar o nome de três das cinco músicas que eles colocariam para tocar ao vivo na rádio. Fui selecionada, acertei não só o nome de três músicas, mas das cinco e ganhei os prêmios. No dia seguinte, minha mãe, meu irmão e eu fomos lá buscar os ingressos e o kit. Com os ingressos, consegui levar quase toda minha família para o show na praia. Foi um baita show – como todos os outros da banda, não importa quanto os anos passem, quantas apresentações eu já tenha ido, é sempre como se fosse a primeira vez.
Mas a relíquia desse prêmio é sobre o que vou recomendar aqui. O kit da banda consistia, dentre vários itens, o CD “Severino” autografado. Meus olhos brilhavam. Era meu primeiro autógrafo deles e mais um CD para a minha coleção, o que naquela época valia muito, pois era a única forma de escutar a música que quisesse a hora que quisesse – não existia YouTube nem streaming. Na verdade, a internet era paga por minutos e isso custava bastante. Gastar dinheiro para ouvir música não era uma opção. Mas voltando ao CD, ele me intrigou. Eu, que já era fã deles há 3 anos, nunca tinha ouvido falar desse álbum. Não conhecia nenhuma de suas músicas. Nenhuma delas tocava na rádio. Não é para menos. “Severino” era até então – e provavelmente segue sendo – o maior fracasso de vendas paralâmico. Possivelmente foi dado de brinde por estar sobrando nos estoques mesmo. Os jornais chegaram a noticiar tamanha reprovação comercial. “Em 1994, o trio carioca Paralamas do Sucesso abriu barril de pólvora ao apresentar o álbum mais estranho, corajoso e mal-sucedido da discografia do grupo”. Nem mesmo a gravação e mixagem em estúdios ingleses, um luxo para a época, foram capazes de despertar o reconhecimento do público pela obra.
Porém, eu que por ingenuidade da pouca idade recebia aquele presente como um tesouro – e de fato, para mim é até hoje – e sem saber de seu fracasso de vendas, acabei por gostar muito do que ouvira. Tornou-se um dos meus preferidos. Uma mistura de ritmos nordestinos, swing latino, rock, gírias brasileiras, canções em espanhol... Acabara de me apaixonar por aquilo que costuma se chamar de lado B. Ouvia em looping, coisa de 5 ou 6 vezes por dia, sem exagero e sem enjoar. Era uma paixão solitária. Se eu já não tinha nenhum amigo na escola para conversar sobre Paralamas do Sucesso, sobre o “Severino” menos ainda. Nesse sentido, fui tão incompreendida pelas amigas quanto o próprio álbum pelos consumidores.
Figura 1: Meu tesouro, meu "Severino" autografado, ganho na promoção da rádio
Com o tempo, minha amizade com “Severino” foi crescendo e amadurecendo, sem precisar da compreensão alheia. Eu não seria capaz de explicar o quanto ele foi um amigo importante, uma ótima companhia de viagem, uma vez que era um dos meus discos preferidos para ir escutando madrugada adentro enquanto me deslocava semanalmente de Curitiba para Londrina para cursar as disciplinas do doutorado, em 2019. Nas estradas, em boa parte, desertas, era com ele que eu ia cantando pra me sentir menos sozinha – e mais desperta. Enfim, ele tem um espacinho tão especial no meu coração que, numa das oportunidades que tive de conversar com a banda, após um show em 2013, lembrei que – e isso que digo está gravado, pois parte desse encontro foi registrado para o lançamento de um documentário sobre a banda – Herbert Vianna me contava sobre o seu fascínio pela sua terra natal, João Pessoa; me disse que, quando eu tivesse oportunidade, que fosse para lá conhecer. A querida Jampa de Herbert certamente foi uma das suas inspirações para a concepção desse álbum, e a quem lhe contei sobre toda a minha admiração por este que, por muitos, foi desprezado.
Figura 2: Eu e Herbert conversando após o show de 2013, onde lhe conto sobre a minha admiração por "Severino”
Sobre as músicas, são onze faixas e outras duas bônus track, totalizando treze canções. Os mais místicos dirão que esta é a explicação da derrota. Mas, pensando bem, o numeral combina bem com a história de rejeição.
A primeira delas parece já prever o que estava por vir. “Não me estrague o dia” conta sobre os perrengues brazucas de quem vende o almoço para comprar o jantar, num país tão assolado por desigualdades sociais. “Navegar impreciso” segue numa pegada de denúncia sobre as iniquidades cometidas pela colonização – em português e inglês, talvez na esperança de que a queixa atingisse ouvintes internacionais.
Enquanto as duas primeiras canções abordaram aspectos mais amplos, sociais, as próximas duas são reflexões mais introspectivas: “Varal” traz o amor – e a dor – nas simplicidades. Finaliza dando uma dica da sua inspiração, que anos mais tarde foi confirmada pelo baterista da banda. “Rebenta a bolsa, revela ao mundo a cabeça”. De fato, nada mais cheio de amor e dor simultaneamente do que um parto. “Réquiem do pequeno” alerta para a brevidade da vida, que por vezes nos passa despercebida enquanto estamos distraídos, empenhados, correndo para ganhar o pão de cada dia.
“Vamo batê lata” foi a música de maior sucesso do disco, não por ter estourado nele, em si, mas, no ano seguinte, quando a banda caiu na estrada com a turnê de mesmo nome, cantando clássicos consagrados anteriormente na carreira e adicionando apenas esta de “Severino” no repertório. “Vamo batê lata” é uma exaltação ao brasileiro, à brasilidade, à força e à resistência de um povo que segue em busca de criar alegria mesmo em meio ao caos.
“El vampiro bajo el Sol” acaba truncando a festividade toda da canção anterior. Com letra e melodia de início soturno, tal como um vampiro, mas que ao longo dos acordes, renasce como uma fênix, numa explosão de piano, percussão, baixo, bateria, guitarra e coral finamente orquestrados. Foi com ela que conheci e passei a apreciar o roqueiro argentino Fito Paez – amigo d’Os Paralamas, pouco conhecido na cena nacional, mas muito popular no restante da América Latina.
“Músico” e “Dos Margaritas” surgem para quebrar com a realidade e a lógica, numa estética semelhante ao surrealismo e ao dadaísmo, respectivamente. “Músico”, composta pelo tropicalista Tom Zé, diverte-se com as métricas e possui rimas peculiares. Brinca com a constatação da origem da vida, seja na narrativa bíblica, seja nas relações sexuais. “Dos Margaritas” é uma montanha-russa entre a perspicácia e a insensatez. Uma singularidade da letra: a lembrança do amigo Vital, primeiro baterista da banda, substituído às pressas em 1982, ao faltar a um show que ia rolar na Universidade Rural do Rio de Janeiro, onde Bi Ribeiro, o baixista, cursava Zootecnia. João Barone, até então estudante de Biologia, entrou em seu lugar e nunca mais saiu.
“O Rio Severino” retoma a temática inicial, denunciando as desigualdades sociais que o Brasil enfrenta, onde a esperança de muitos está nos auxílios e na fé. A música ironiza ainda a hipocrisia da burguesia e seus discursos meritocráticos, sempre na intenção de manter suas posições privilegiadas. “Cagaço” segue no mesmo teor, discursa sobre a desilusão que nos assola diante do panorama que, independentemente de épocas, se mantém atual. Coloca lado a lado medos inerentes do ser humano.
“O amor dorme” encerra as músicas autorais e originais do álbum. Com uma melodia suave, traz a experiência do amor que exige um exercício constante de visitação, uma vez que passa muitas vezes despercebido.
“Go Back” e “Casi um segundo” são duas faixas extras. A primeira, uma versão em espanhol da canção gravada originalmente em português, dez anos antes, no álbum de estreia dos amigos Titãs. A segunda, também uma versão em espanhol de um sucesso já quase consagrado anteriormente pel’Os Paralamas.
A obra, como um todo, é uma potência sonora. Consegue reunir, em um só álbum, músicas que conversam em enredo e sonoridade. Conciliou guitarra, bateria e baixo do power trio paralâmico, com samplers, teclado, percussão, triângulo, viola, piano, xequerê, clavinet, metais/instrumentos de sopro, coral, orquestra e alguns outros instrumentos nada convencionais, como latão de óleo, canos de PVC, balde e serrote. Ufa!
E a preciosidade toda de “Severino” não se restringe aos ouvidos. Para ilustrar o encarte, houve um trabalho todo especial com um estandarte de Arthur Bispo do Rosário, artista plástico que foi tão incompreendido em seu tempo, quanto Os Paralamas com seu CD de 1994 e minha admiração pela banda diante dos meus amigos de escola.
“‘Cada louco é guiado por um cadáver. O louco só fica bom quando se livra desse morto’, afirmou certa vez Arthur Bispo do Rosário, que, durante quase meio século, esteve internado na Colônia Juliano Moreira, do Rio de Janeiro. Para livrar-se desse cadáver, que é a loucura, só havia para Bispo dois caminhos: a morte (que ali, verdadeiro ‘cemitério dos vivos’, como diria Lima Barreto, é lenta e deprimente) ou a criação. Optou por esta última, e de modo tão intenso, que criar tornou-se para ele sinônimo de vida, razão de viver. Como escreveu num dos seus estandartes, legendando a imagem costurada de um corpo cujas partes descrevia: ‘Eu preciso destas palavras escrita’. Assim, pela vida da arte, deu um sentido criador aos seus delírios, administrando sua loucura. Ao morrer, em 1989, com 77 anos, deixou para a cultura brasileira e universal, um dos mais impressionantes e pungentes testemunhos sobre a importância do ato criador como veículo de afirmação da dignidade humana.” (Frederico de Moraes, na última página do encarte de “Severino”.)
O estandarte que ilustrou então o encarte consiste na imagem de um corpo que carrega no peito o nome Cloves. No entorno, várias partes da anatomia humana – costelas, pulmão, umbigo, rins, queixo, virilha, pescoço... Abaixo do corpo, Arthur Bispo do Rosário deixa uma pista para a lista de palavras: “EU PRECISO DESTAS PALAVRAS ESCRITA”.
O direito de uso de imagem do estandarte de Bispo do Rosário para estampar a produção foi cedido a’Os Paralamas em troca do serviço de descupinização do acervo do artista, que até então estava guardado em condições inapropriadas para a devida preservação. Hoje, toda a obra de Bispo é tombada como patrimônio cultural do Brasil e, diferentemente das condições sob as quais suas produções estavam mantidas na década de 90, está conservada e em exposição no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (mBrac), localizado justamente junto ao espaço da Colônia Juliano Moreira, onde o artista passou tantos anos internado tido como louco.
Figura 3: Imagem completa do estandarte "Eu preciso destas palavras escrita" disponível no site do Museu
No site do mBrac é possível acessar a biografia de Arthur Bispo do Rosário, com suas fotos e linha do tempo, imagens do acervo de suas obras, exposições fantásticas com tours virtuais, dentre outros. Nele também é possível entender mais sobre a reforma psiquiátrica. Em 1952, foi criado o Museu Egas Muniz para arquivar as produções de arteterapia dos internados na Colônia, em homenagem ao médico precursor da lobotomia, cirurgia que consistia na retirada de partes do cérebro a fim de “acalmar os loucos mais rebeldes”. No final dos anos oitenta, foi rebatizado para Museu Nise da Silveira, psiquiatra que aliou afeto à arte para tratar os “malucos” a quem tanto se dedicava. Por fim, o museu foi renomeado uma vez mais, agora Museu Bispo do Rosário, deslocando o protagonismo para quem deveras produzia as artes. Aliás, em tempo, deixo aqui também a sugestão aos leitores do filme Nise: O Coração da Loucura, que aborda com riqueza de detalhes e a sensibilidade devida a história da médica que, na época, também foi incompreendida por seus pares quando recusou o uso de práticas como a lobotomia e o eletrochoque na terapia psiquiátrica, contribuindo para a revolução desta ciência no Brasil.
Figura 4: Foto de Arthur Bispo do Rosário, disponível no site do Museu
Figura 5: Imagem do Manto de Apresentação, disponível no site do Museu
No início da pandemia, zapeando no streaming em busca de documentários para a minha tese, esbarrei em “Eu preciso destas palavras escrita” no catálogo e imediatamente lembrei da capa do meu queridinho. Dirigido e roteirizado por Milena Manfredini e Raquel Fernandes e produzido por Cavi Borges, o curta de 2017 conta a história de Arthur Bispo do Rosário, que, além de artista, “louco” na Colônia Juliano, ilustrador acidental do encarte de “Severino”, também havia sido marinheiro e pugilista. Infelizmente hoje, em setembro de 2021, o curta não está disponível ao público. Faço meus desejos de que em breve esteja, pois é outro tesouro do audiovisual brasileiro.
Figura 6: Cena do filme "Eu preciso destas palavras escrita"
Para conhecer e entender ainda mais sobre o silenciamento para com Bispo do Rosário e sua arte, Davi Moreira Lopes fez uma ótima pesquisa na sua dissertação “Garganta Grita: Arthur Bispo do Rosário e o silenciamento produzido pelos regimes de autorização discursiva”. Nela, Davi “buscou alternativas às práticas de pesquisa que têm se mostrado engajadas com a perpetuação do excludente esquema de autorização discursiva. Nesse sentido, reuniu-se propostas teóricas que prezam por um retorno do corpo à seara dos saberes [...]. Somadas a elas, um repertório epistemológico menos comprometido com os modelos que autorizam a fala de um grupo enquanto silenciam a de outro”. Em tempo, “Garganta Grita” também é um dos trechos do icônico estandarte que ilustra “Severino” e está com alguma evidência ao lado do corpo.
E no meio de tanta loucura, daqueles incompreendidos em/de seus tempos, lembrei-me da abordagem da loucura nas leituras de Michel Foucault, numa espécie de desbiologização da loucura, uma vez que esta estaria mais dependente da cultura da época em que se considera do que com o fisiológico necessariamente. Ao longo dos tempos, a visão do que é um ser humano normal e de um ser humano louco foi mudando, e Foucault vai descrevendo e avaliando isso em suas aulas e obras. A loucura, que antes estava vestida do desconhecido, com ares que flutuavam – tal como a Nau dos Loucos – entre o fascínio e o perigo, a partir de determinado momento se estabelece enquanto o Outro da razão, desenvolvendo, a partir daí, tratamentos com base na ciência médica da loucura. Para aqueles que se sentirem curiosos e desejarem se aprofundar sobre o assunto, recomendo “História da Loucura”, obra na qual Foucault revisa o movimento realizado pelo entendimento do que é loucura com o passar dos séculos, suas caracterizações e modos de “tratamento” – e também o compilado de suas aulas sobre o assunto, em “O Poder Psiquiátrico”, que também aborda o assunto, porém organizado em textos mais curtos, cada um deles referentes a uma de suas aulas proferidas.
Figura 7: "Grande Veleiro" de Arthur Bispo do Rosário, disponível no site do Museu
Bom, quanto ao CD – pois é, a ideia inicial era apenas a recomendação de um álbum de músicas de uma banda de que sou fã –, gostaria de finalizar que, mesmo passadas quase três décadas de seu lançamento, considero-o mais atual do que nunca. Talvez seja um sentimento próximo do que Foucault chamou de heterocronia, mas aí já é assunto para um próximo papo.
Referências
OS PARALAMAS DO SUCESSO. Severino. Manaus: EMI, 1994. 1 disco compacto (44 min).
Sugestões outras de referências e inspirações:
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.
FOUCAULT, Michel. O Poder Psiquiátrico. Curso dado no Collège de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006.
LOPES, Davi Moreira. Garganta Grita: Arthur Bispo do Rosário e o silenciamento produzido pelos regimes de autorização discursiva. 2019. 91 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2019. Disponível em: http://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/50000/1/2019_dis_dmlopes.pdf
MUSEU BISPO DO ROSÁRIO ARTE CONTEMPORÂNEA. Rio de Janeiro: 2021. Disponível em: https://museubispodorosario.com
NISE: O Coração da Loucura. Direção: Roberto Berliner. Produção: Rodrigo Letier e Lorena Bondarovsky. São Paulo: Imagem Filmes, 2015. (109 min), cor.
Sugestão no devir:
EU Preciso Destas Palavras Escrita. Direção: Milena Manfredini e Raquel Fernandes. Produção: Cavi Borges. Rio de Janeiro: [s.n.], 2017. (19 min), cor.
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