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MAPEAMENTO DAS DISCUSSÕES SOBRE #MARCOTEMPORALNÃO NO FACEBOOK

Por Leonardo W. Soares de Melo


Introdução


As relações entre Ciências e povos originários, de uma perspectiva academicamente esotérica, se enredam em diversos âmbitos. De questões sanitárias e suas conexões com políticas públicas, às esferas jurídicas dos conflitos territoriais e controvérsias ambientais, os interesses envolvidos em torno desse tema demarcam uma complexidade que transborda suas dimensões estritamente técnicas. Em ampliação desse estrato, ainda são inúmeros “os desafios para o enfrentamento das desigualdades e vulnerabilidades dessas populações, como a consolidação da cidadania, equidade e direitos constitucionalmente garantidos” (KABAD et al., 2020, p. 1654).

Nesse seguimento, as questões envolvendo a demarcação de terras indígenas têm ganhado centralidade social no Brasil desde a redemocratização. No ano de 2021, um evento que tem motivado polêmicas é a tese do “marco temporal”, submetida ao Supremo Tribunal Federal (STF), e que prevê a rediscussão dos critérios de demarcação territorial no país, consentindo aos povos indígenas o direito a terras ocupadas somente em períodos anteriores à promulgação da Constituição de 1988. Conforme divulgou o Portal G1, isso pode acarretar a expulsão de grupos indígenas que não puderem comprovar seu vínculo à terra, além de suspensão de processos historicamente arrastados e comercialização de áreas sem titularidade.

De uma perspectiva de Estudos Culturais das Ciências, a aprovação do marco temporal afetaria diretamente as discussões ambientais em âmbitos científicos: de um lado, pois é atestada, histórica e empiricamente, segundo a Funai (2015), a proficuidade de povos originários na preservação de recursos naturais e atendimento dos denominados serviços ambientais; de outro, porque os meios científicos não estão de fora das discussões democráticas, sendo, conforme tem discutido Bruno Latour (2004), um exercício de ecologia política.

Em atenção a essas implicações, meu intuito neste manuscrito foi mapear as altercações sobre o marco temporal no Facebook, me posicionando como um interessado nas implicações culturais desse evento para as educações científicas e ambientais. Para isso, busquei entender os desdobramentos das menções de protesto em relação a essa questão, por meio de inquirição da hashtag #MarcoTemporalNão. Firmei-me em técnicas e metodologias de Mapeamento de Controvérsias (VENTURINI, 2010) para acompanhar três dimensões dessa questão: quando as discussões foram mobilizadas; quem foram os atores responsáveis; e como as discussões se sucederam. Os dados de mídia social foram obtidos com o Crowdtangle.

Com isso, espero oferecer ao leitor um breve panorama sobre como os movimentos de resistência diante das questões ambientais, analisados de uma perspectiva de Estudos Culturais das Ciências, mobilizaram esse assunto em espaços digitais.


Três lentes de análise: quem, como e quando


Para mapear a questão do marco temporal no Facebook, pesquisei pela hashtag #MarcoTemporalNão no campo de buscas do Crowdtangle. Delimitei a busca de modo a considerar: perfis verificados, grupos e páginas do Facebook; posts compreendendo fotos, vídeos, links e compartilhamento de status; o período de 01 de janeiro de 2021 a 09 de setembro do mesmo ano.

No intento de checar quem foram os atores envolvidos, considerei os dados de autodeclaração de categorias do Facebook. No quesito temporal, analisei o quantitativo de interações entre perfis e grupos ao longo do tempo. Interações compreendem o total de curtidas, comentários e reações mobilizadas pelo perfil ou grupo, indicando sua capacidade de instigar relacionamentos entre atores nessa mídia social, ou seja, produzir ação. De maneira a entender como as altercações foram mobilizas, acompanhei os modos pelos quais os perfis e grupos replicaram conteúdo (links) entre si.

Na primeira lente de análise (quem), englobando o espaço entre as declarações individuais e os debates, verifiquei que a maior parte das menções à hashtag #MarcoTemporalNão foi impulsionada por perfis sem fins lucrativos, seguidos por políticos e perfis pessoais. Essas categorias somaram juntas 55,18% das interações impulsionadas. Para apresentar esses e outros dados, produzi um gráfico de barras a partir dos dados de categorias com mais de 1% das interações somadas. O gráfico foi apresentado na Figura 1:



Figura 1. Percentual de interações.


Esses resultados indicaram tendências diversas de interesse sobre a questão do marco temporal, angariando interesses e atores de esferas mais amplas do que as particulares dessa causa. Nesse sentido, perfis e grupos de causas sociais e políticas se destacaram em termos de interações, mas atores ligados a comunidades organizadas, portais de notícias, jornalismo e artistas também incentivaram relacionamentos. Em que pese essa diversidade, atores ligados a temas científicos e educacionais não estiveram entre os mais interessados e influentes em relação a essa causa.

Sobre a segunda lente de análise (quando), notei que dois períodos específicos concentraram a maior parcela das interações entre perfis. O primeiro, que transcorreu de junho a julho de 2021. O segundo, mais sobressalente, iniciou no fim de agosto de 2021 e progrediu até o início de setembro do mesmo ano. Para visualizar esses resultados, elaborei o gráfico disposto na Figura 2:


Figura 2. Total de interações.


Com relação ao mês de junho, um evento influente foi o agendamento do julgamento no STF, marcado inicialmente para acontecer no dia 11 daquele mês. Protestos realizados por lideranças e movimentos indígenas também se mostraram relevantes nesse sentido. Os seguintes trechos de mensagens compartilhadas em junho reforçaram essa hipótese: “Nessa sexta, 11, o julgamento irá decidir o destino das demarcações de terras indígenas em todo o Brasil”; “Lideranças indígenas estão mobilizadas, em Brasília, e realizam uma vigília em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) para manifestar contra o marco temporal”; “A partir da meia-noite desta sexta-feira (11), o STF começa a julgar o caso de repercussão geral que poderá definir o futuro das demarcações de terras indígenas em todo o Brasil”.

Em referência a agosto e setembro, o início de fato do julgamento pelo STF, em 26 de agosto, após um período de latência nas discussões, pareceu impulsionar novamente as interações entre perfis. Isso ficou evidenciado pela emergência de mensagens nesse mês, como: “É hoje! STF vai decidir o futuro do Brasil e dos povos indígenas! #marcotemporalnão”. Uma publicação de 27 de agosto do perfil “Mídia Ninja” sobre os protestos de indígenas em Brasília mobilizou 29980 interações entre perfis, contribuindo para embalar o tema: “BOLSONARO GENOCIDA Um caixão de dez metros, representando as mortes provocadas por Bolsonaro e seu governo, foi queimado hoje na porta do Palácio do Planalto por indígenas que participam do acampamento Luta Pela Vida”.

Esses resultados assinalaram tendências de relação entre as mobilizações da hashtag #MarcoTemporalNão no Facebook e eventos atratores de interesse. Por um lado, isso indicou que os atores engajados no tema contribuíram para o impulsionamento da hashtag, motivando menções e divulgação de conteúdo sobre o marco temporal nessa mídia social. De outro modo, a lacuna entre os dois picos sugeriu uma concentração de interesses vinculada à emergência dos julgamentos no STF, tendo o assunto sido pouco ou menos mobilizado em outros períodos.

Por fim, na terceira lente de análise (como), observei alguns grupos de interesse emergentes das replicações de posts entre perfis e grupos do Facebook. Para evidenciar esses resultados, criei um diagrama de redes com o Gephi. Os nós representaram perfis, grupos e links compartilhados, e as arestas indicaram as interações entre essas entidades. Defini a distribuição algorítmica Force Atlas 2, no intuito de simular um sistema físico direcionado por força para especializar a rede (JACOMY et al., 2014). Apliquei o filtro de modularidade, de modo a denotar colorações específicas a agrupamentos despontantes.

O diagrama produzido foi apresentado na Figura 3:


Figura 3. Diagrama de redes de relações.


Em análise desse diagrama, verifiquei um intrincado enredamento, em vermelho, que expressou as relações entre grupos e perfis da esquerda do espectro político popular. Esse cluster englobou perfis não tão destacados individualmente em termos de publicações mobilizadas, mas concentrou muitos compartilhamentos mútuos. Isso assinalou uma tendência de aglutinação de atores desse campo político nos movimentos de menção da hashtag #MarcoTemporalNão.

Outros clusters ressaltados concentraram compartilhamento de publicações entre perfis e grupos específicos. Nesse sentido, sobressaíram grupos e lideranças indígenas, como: a página da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (verde); a página Cimi – Conselho Indigenista Missionário (azul), que também enredou os perfis “Antenas da Terra” e Centro de Trabalho Indigenista; “GRUMIN/REDE DE COMUNICAÇÃO INDÍGENA” e “Rede de Cultura Digital Indígena” (amarelo); “Direitos Indígenas” (azul claro).

No centro do diagrama, o perfil da liderança “Sonia Bone Guajajara” (em roxo) se mostrou um atrator de mobilizações entre os perfis e grupos de lideranças indígenas (azul) e os perfis de grupos de esquerda (vermelho). Isso expressou a atuação dessa liderança em conectar grupos de interesse diversos no impulsionamento da hashtag #MarcoTemporalNão no Facebook.


Conclusões


Os movimentos de resistência diante da tese do marco temporal se mostraram atuantes no Facebook. Considerando o período analisado (de 1 de janeiro a 9 de setembro de 2021), foram 10266 posts replicados e 1069421 interações entre perfis. Nesse sentido, a hashtag movimentou ações de grupos ligados às causas indígenas, mas também atraiu interesse de movimentos políticos progressistas, artistas e personalidades públicas, portais de notícias e de jornalismo. No entanto, as mobilizações de atores em relação ao tema tenderam a acompanhar os desdobramentos de eventos específicos, como os julgamentos do STF.

A baixa mobilização de perfis e grupos ligados em relação ao “MarcoTemporalNão pode ser um indicativo da diminuta influência de atores ligados às Ciências em relação a uma pauta pouco discutida nos âmbitos técnicos e científicos tradicionais. Da perspectiva dos Estudos Culturais das Ciências, isso denota uma demanda por aproximação das esferas científicas a causas e assuntos exotéricos, questionando a suposta neutralidade apolítica dessa Ciência do big C, e reatando assim o nó górdio entre as causas científicas e políticas (LATOUR, 2004).


Referências


FUNAI – Fundação Nacional do Índio. Serviços ambientais: o papel das terras indígenas, 2015. Disponível em: http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/cgmt/pdf/Servicos_Ambientais_o_papel_das_TIs.pdf. Acesso em: 09 set. 2021.


KABAD, J. F.; PONTES, A. L. M.; MONTEIRO, S. Relações entre produção cientifica e políticas públicas: o caso da área da saúde dos povos indígenas no campo da saúde coletiva. Ciência e Saúde Coletiva, v. 19, n. 05, p. 1653-1665, 2020.


LATOUR, B. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: EDUSC, 2004.


VENTURINI, T. Diving in magma: how to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science, v. 19, n. 03, p. 258-273, 2010.


PORTAL G1. O que é o marco temporal sobre terras indígenas: entenda o que está em jogo no julgamento do STF. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/08/27/o-que-e-o-marco-temporal-sobre-terras-indigenas-entenda-o-que-esta-em-jogo-no-julgamento-do-stf.ghtml. Acesso em: 09 set 2021.


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