top of page
quasecienciasgecce

Entrevista com a professora Maria Lúcia Wortmann

Por Moisés Alves de Oliveira

 

A Profa. Dr. Maria Lúcia Castagna Wortmann tem uma longa relação com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduada em História Natural pela UFRGS em 1967, Mestrado em Educação pela UFRGS, em 1980, e Doutorado em Educação pela UFRGS, em 1994, realizou parte das pesquisas em um doutorado-sanduíche na Université Pierre et Marie Curie (Paris VI). A aproximação com os estudos de epistemologia, na década de 1980, foi decisiva para a reorientação dos interesses de pesquisa da Profa. Wortmann e sua inserção, mais tarde, nas perspectivas dos Estudos pós-estruturalistas, tornando-se, a partir dos anos de 1990, umas das mais influentes pesquisadoras no campo dos Estudos Culturais das Ciências no Brasil. Atualmente é professora da Universidade Luterana do Brasil, onde atua no Programa de Pós-Graduação em Educação, e professora pesquisadora convidada do Programa de Pós-graduação em Educação daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul.

O prof. Moisés Alves de Oliveira é Coordenador do grupo de pesquisa GECCE, graduado em Química pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Mestre em Química pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

 

Moisés: Professora Maria Lúcia, é um grande prazer ter a senhora aqui com a gente, no GECCE, e nessa revista que começa a dar os primeiros passos, e é para nós uma honra a senhora ser a nossa primeira entrevistada do panfleto Quase-Ciências. Sinta-se acolhida, sinta-se em casa, sobretudo porque já nos conhecemos das nossas trajetórias de pesquisa e pela história que a gente tem desde a formação desse grupo de pesquisa.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Eu que agradeço o convite, Moisés, me sinto muito honrada de poder conversar com vocês, contando um pouco dessa história de trabalho que nós vimos fazendo já desde 1997. Eu acredito que essa é a data inicial do interesse que foi surgindo nesta abordagem dos Estudos Culturais da Ciência, então é um prazer estar com vocês e estar relembrando um pouco dessa história de trabalho. E não precisas me chamar de senhora, né, Moisés, podes dispensar, vamos usar o "tu" (risos). Okay?


Moisés Alves de Oliveira: Interessante como eu conheço bem a história do "tu" (risos). Agora, para nós, aqui no Paraná, o "tu" é tão formal quanto o "senhora" (risos), mas vai ser sim "tu" (risos).


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Okay, Moisés, vamos lá então. Eu estou à disposição de vocês, okay?


Moisés Alves de Oliveira: Obrigado. Bom, nosso primeiro ponto, Maria Lúcia, vai exatamente na direção em que você inicia nessa história, nós queremos saber um pouco da sua história. Como é que a professora Maria Lúcia se institui como professora e vai acabar na área dos Estudos Culturais da Ciência a partir da História Natural? Claro, a influência da sua formação e pós-graduação na educação pode ter te dado pistas, mas daí como é que você faz? Como é que é esta tua trajetória? Conta pra gente.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Bom, na verdade quando terminei a faculdade eu fiquei vinculada ao Colégio Aplicação da UFRGS, que é um colégio onde se fazia pesquisa em educação, então essa minha experiência no Colégio Aplicação é uma experiência muito decisiva na direção desse trabalho de pesquisar a educação, e essa pesquisa caminha nos primeiros anos muito na direção de "como é que se faz o ensino". Então muito na direção de como é que funcionam essas metodologias de ensino, o quê que se ensina, qual é a importância desses temas que se ensina, quer dizer, é uma experiência que vai muito nessa direção de trabalhar numa forma, mesmo pesquisando; eu lembro que tínhamos um trabalho de pesquisa que fazíamos, eu tinha uma colega com a qual eu dividia esse trabalho, que era a Beatriz Madalena, que foi durante muitos anos professora do colégio de aplicação, e nós tínhamos um trabalho que se chamava "uma abordagem heurística no Ensino de Biologia", onde a gente trabalhava com estas questões mais de "como trabalhar com essas ideias mais inovadoras, dentro do ensino da Biologia”. Esse talvez foi um trabalho bem decisivo, e depois um outro trabalho que nós começamos a fazer, também no Colégio de Aplicação, que era um trabalho de buscar uma ação mais interdisciplinar. Eu lembro que nós trabalhamos com dois professores de Física. Nós éramos duas professoras de Biologia e dois professores de Física que procuravam nas turmas, daquele tempo, quarta série do ensino fundamental, acho que era ensino fundamental... Não. Se chamava ginásio, na quarta série. Foi o meu primeiro ano de atividade como docente, nós procurávamos fazer uma inter-relação entre este trabalho de física e o trabalho de biologia na quarta série, com os alunos que iam entrar no ensino médio. Acho que esse trabalho, esse interesse pela pesquisa vem daí, tá!?

Quando eu saí do Colégio de Aplicação eu fui para uma experiência, também inovadora, que houve na UFRGS, que foi chamado "Primeiro Ciclo de Estudos da UFRGS", que era uma coisa muito estranha, vamos dizer assim (risos), porque na verdade esse primeiro ciclo antecedia os estudos que os alunos que tinham feito vestibular fariam nas suas carreiras específicas, não sei se estou sendo clara. E era uma coisa estranha porque era assim, metade dos alunos já estavam classificados para essas suas formações e a outra metade ia se classificar a partir do desempenho que tinha nesse primeiro ciclo de estudos da UFRGS. Eu trabalhava naquela época com introdução à metodologia da pesquisa científica. Um dos coordenadores era o Edmundo Kanan Marques, a outra era a Bela Oliven, e nós trabalhávamos com essas questões da metodologia científica, com os estudantes. Estudávamos o Carnap (Rodolf), o Mario Bunge, então os padrões de serendipidade na Ciência, essas coisas todas.

Quando eu saí de lá, voltei para o Colégio Aplicação e comecei um mestrado também em ensino, mas também muito voltado a essa discussão sobre como ensinar metodologias de ensino, classificação de questões, quer dizer, o meu mestrado foi em cima também de questões que eram questões abertas, eu queria trabalhar com esse padrão mais alternativo de proposição de questões.

Bom... e depois disso, quando eu passei a trabalhar no Departamento de Ensino e Currículo também, eu sempre fui professora de Metodologia de Ensino de Ciências, Metodologia de Ensino de Biologia, Prática de Ensino de Ciências, Prática de Ensino de Biologia, eu estava nessa direção ainda. Eu estudava Piaget nessa altura, passei daquela fase do colégio onde a gente trabalhava com essas metodologias mais positivistas eu acho que posso dizer né, mas aí eu já tava trabalhando com Piaget, com Paulo Freire... nos primeiros anos do meu trabalho na parte de fundamentação para o Ensino da Ciência e da Biologia, eram esses dois autores, e aí eu comecei também a me preocupar com essa questão: "por que que se ensina A e não se ensina B em Biologia?", ou seja, por que que eu opto por dizer para os meus estudantes que eles devem desenvolver determinados tipos de conteúdos que tenham a ver com as questões sociais, etc. e tal. Ou então: quais são as questões importantes, as teorias importantes que fundamentam a Biologia? Eu estava muito interessada nessas teorias fundantes da Biologia, aí comecei a estudar o Kuhn, o Feyerabend, com a Anna Carolina Regner, que era uma excelente estudiosa desses autores, que nos deixou há pouco tempo, é uma perda lastimável que a gente também teve né, em termos da estudiosa e da acadêmica que a Anna Carolina era.

Então, comecei com a Anna, estudando História da Ciência, Filosofia da Ciência, estudando Kuhn, estudando Feyerabend, e eu acho que esses dois autores foram decisivos na minha vida e na minha compreensão sobre a ciência, sabe? Sem dúvida, quando eles começam a mostrar como é que a Ciência se faz, isso para mim foi um deslocamento muito importante.

Na minha tese de doutorado, eu trabalhei com esses dois autores, ainda numa dimensão muito voltada a essa busca mais epistemológica, "o que que é importante estudar em biologia", tanto é que eu fui para a França para ver o que eles estudavam por lá, fui para Pierre e Marie Curie (Université Pierre et Marie Curie (Paris VI)), que é uma universidade importante na área da Ciência. A Paris 6 e Paris 7, são duas que funcionam praticamente juntas, e lá também comecei a ver que existia um deslocamento importante na forma deles conduzirem, muito mais aberta de fazer este estudo da Biologia. Enfim, quer dizer, esses foram momentos importantes de deslocamento para chegar aos Estudos Culturais da Ciência, que a gente começa com Rouse, com Joseph Rouse, tem aquele texto que eu acho que é um texto que motiva mesmo essa preocupação com os Estudos Culturais da Ciência, então acho que é isso. O ano deve ter sido lá por 1997. Terminei a minha tese de doutorado em 94, comecei a estudar Estudos Culturais com o Tomaz Tadeu, numa disciplina que o Tomaz oferecia. Começamos a falar aí em Estudos Culturais, acho o primeiro texto que eu li foi "O estado da arte dos Estudos Culturais", aquele texto do George Yúdice, que depois ficou nosso parceiro em muitas situações. Eu tenho uma grata amizade com ele. Enfim, acho um excelente acadêmico também, mas enfim esse contato com os Estudos Culturais e depois os Estudos Culturais da Ciência a partir do Joseph Rouse, quer dizer, quando a gente começa a trabalhar com os Estudos Culturais, a pergunta que vai surgindo é "como é que isso se engata nas discussões que fazemos sobre a ciência?". Não sei se falei demais (risos).


Moisés Alves de Oliveira: Eu ficaria aqui ouvindo você o dia todo sobre essa história. Bom, aí você cita a Anna Carolina como uma parceira de trabalho e o Tomaz (Tomaz Tadeu da Silva). Para o que nós discutimos dentro dos Estudos Culturais, o Tomaz é uma figura central, importante.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Certamente, grande parte das traduções de Estudos Culturais que ainda circulam por aqui hoje foram feitas pelo Tomaz, não é!? Certamente nos anos 90, final dos anos 90.


Moisés Alves de Oliveira: Vamos nessa direção, anos 90. Você cita 97, mas os Estudos Culturais começam lá no pós-guerra, da Primeira Guerra Mundial, em que a centralidade dos Estudos Culturais emerge a partir do trio fundador, digamos assim, com o Raymond Williams, Hoggart e o Thompson, e depois com a entrada do Stuart Hall, e aí vai se ampliando bastante até 2002, quando o grupo é extinto lá na Inglaterra. Por que demora tanto para chegar no Brasil, Maria Lúcia?


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Pois é, na educação, seguramente, foi lá pelos anos 94-95, quando o Tomaz começa a fazer estas traduções dos textos do Hall, e na verdade ali como "Alienígenas na sala de aula", que eu acho que é o primeiro livro que contém mesmo um grande número de traduções, que tem aquele texto do Grossberg em parceria com outros colegas, onde ele faz um levantamento, já é um texto de 91 que o Tomaz traduziu nesse livro que saiu em 95, mas ele é um texto que também dá uma posição dos Estudos Culturais no mundo, porque os anos 90, na verdade, seriam os anos em que os Estudos Culturais começaram a circular mesmo por todo o mundo, eu não sei por que demorou tanto tempo, mas em termos de circulação é os anos 90. Talvez uma coisa possível, que eu acho que tem, são aqueles livros que foram editados pela Open University. Começa um conjunto de livros em 1991, eu acho, e depois tem os outros que são de 1997, onde trabalha-se com a noção de um circuito da cultura.

Então para cada um desses momentos da cultura, o Paul du Gay e o Hall fizeram um apanhado, um conjunto de textos sobre identidade. Nós temos somente 2 traduzidos aqui, eu acho que é o texto da Woodward, e o texto do próprio Stuart Hall "Quem precisa de identidade?", que fazem parte deste livro, depois um conjunto de textos sobre representação, onde tem um texto inicial do Paul du Gay e do Hall, depois tem outro texto do Hall que é um texto super importante também, traduzido neste livro, um outro sobre representação em museus etc. Bom, é um conjunto de textos que eram editados pela Open University, uma universidade aberta que fazia esse conjunto de materiais efetivamente para atingir uma massa maior de alunado. Então eles são textos muito autoprogramados, tem um livro inteiro sobre identidade, um livro inteiro sobre representação, um livro inteiro sobre consumo, um livro inteiro sobre produção cultural, um livro sobre regulação, que é aquele livro que nós temos um artigo produzido, que é o artigo que está na Educação & Realidade (1997), que foi "A centralidade da cultura", é um artigo que continua circulando intensamente até hoje, que é um artigo do Stuart Hall, que vai trabalhar com a ideia da regulação, especificamente. Eu acho que este conjunto de publicações, e essas outras anteriores, essas que eu falei de 1991. Outros livros, eles não têm nada traduzido que eu saiba, mas eles estavam todos inteiros disponibilizados. Eu já trabalhei com eles em algum outro momento, agora não mais, mas enfim e depois estes de 1997, são todas publicações a partir desse trabalho que Stuart Hall e outros, Paul do Gay também, faziam na Open University. Eu acho que isso tem a ver e, também, eu acho que os anos 90 é o ano que os Estudos Culturais se difundem para o mundo, porque as produções australianas que estão ali traduzidas em um livro do Tomaz, elas também são dos anos 90. E assim, os próprios Estados Unidos e o trabalho do (Henry) Giroux, (Petter) McLaren, que começam a trabalhar com Educação e Estudos Culturais, eles também são trabalhos dos anos 90, 94, 95. Depois a Shirley Steinberg começa a trabalhar com a noção de Pedagogia Cultural, que é uma noção que se tornou super importante para os Estudos Culturais depois, enfim, eu acho que esse material da Open é importante. Ah, uma coisa que eu queria chamar atenção, eu acho que os Estudos Culturais no Brasil chegaram antes na área de literatura, viu?! Os estudos literários, eu acho que muito antes, antes dos estudos de educação, o pessoal que trabalhava com teoria literária notadamente, acho que Heloísa Buarque de Holanda é o nome que precisa ser citado certamente, e a Beatriz Rezende, que eu acho que era uma parceira da Heloísa nesse período, elas começam a trabalhar fortemente com esses Estudos Culturais. Tem gente que diz que os Estudos Culturais entraram nas disciplinas pelas bordas né. Meio devagar, as pessoas não querendo muito dizer que eles estão entrando, porque eles são estudos marginais, vamos dizer assim. São estudos marginais de uma certa maneira, porque não tão dentro das disciplinas tradicionais, então marginais nesse sentido. Então eu acho que tem a ver com isso também. Tem aquela leitura lá também "Para ler Pato Donald", que é um dos primeiros textos considerados de Estudos Culturais, mas, enfim, muito marcados aí por uma teorização ainda marxista, que é diferente da forma como os Estudos Culturais chegam para nós em educação na faculdade de educação da UFRGS. Eu acho que o jeito que chega, eu já contei um pouco dessa história no texto que a gente escreveu com a Marisa e com a Rosa, e um texto que eu apresentei há muito tempo atrás também no SBECE, talvez foi o primeiro texto em decorrência de um trabalho que eu fiz para o pessoal lá da CLACSO. Enfim, mas contando um pouco dessa história, eu acho que chega para nós em educação de um outro jeito, porque os trabalhos que chegam para nós já vêm permeados pela preocupação com o pós-estruturalismo. Eu acho assim, por exemplo, os Estados Unidos, os próprios trabalhos do Giroux, eles são muito mais voltados, ainda, a uma teorização crítica do que os trabalhos que nós começamos a fazer aqui, especialmente na UFRGS, eu acho que tem uma diferença, entende? E eu acho que os Estudos Culturais não são uma coisa só, eu acho que mesmo as autoras da teoria literária elas se apropriaram dos Estudos Culturais de formas diferentes. Por exemplo, o jeito que a Heloísa Buarque de Holanda, a Beatriz Rezende fazem Estudos Culturais, e mais recentemente a própria Liv Sovik fazem é muito diferente do modo como a Maria Elisa Cevasco, por exemplo, que é da teoria literária, faz. Ela vem de uma abordagem muito mais marxista. São diferentes formas de conduzir, mesmo dentro da teoria literária, então marcar essa diversidade eu acho que é super importante. Há na educação essa diversidade também, mas não na vertente que se instaura na UFRGS, que é permeada pelo pós-estruturalismo, como também fomos nós que carregamos essa versão para a ULBRA. Lá também, os Estudos Culturais que se fazem lá são muito mais voltados para essa discussão que os reúne, que os liga, que os associa, articula, como a gente queira dizer, aos Estudos Culturais, ao pensamento pós-estruturalista.

Não sei se consegui te responder, mas eu acho que, assim, é o ano da dispersão mesmo, os anos 90 são os anos da dispersão dos Estudos Culturais pelo mundo.


Moisés Alves de Oliveira: Eu gostei muito de ouvir o que tu disseste, porque ajuda a pensar na ideia de que a perspectiva de um estudo cultural tardio no Brasil talvez não seja, precisamos refletir melhor sobre isso, já que ele se difunde pelo mundo mais ou menos na mesma época.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Sim.


Moisés Alves de Oliveira: O Brasil não fica atrás dessa divulgação.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Me parece que não. Eu acho que, assim, estes textos da Open University são muito decisivos para isso. E outra coisa, o próprio Crossroads, o próprio seminário de Estudos Culturais que se realiza em 91 e que é um seminário muito marcante porque já tem um cunho avaliativo. Eu até tenho que recuperar o meu livro lá pela ULBRA, nem sei onde é que ele anda, mas ele é um livrão enorme que faz um apanhado dos Estudos Culturais no mundo em 91.


Moisés Alves de Oliveira: E aí nós caminhamos para aquilo que seria uma curiosidade nossa, dentro do grupo, que de certa forma também são caracterizações e tendências dos Estudos Culturais que levam para outros caminhos. Eu acho que você responde bem essa questão nessa primeira fala tua, dessa percepção de como os Estudos Culturais se difundem de formas diferenciadas no Brasil, as contribuições dentro dos estudos de linguagem, a vinculação marxista delas, e que leva a uma curiosidade nossa também, Maria Lúcia. Parece haver uma certa distinção entre os Estudos Culturais de base, que nascem na Inglaterra, mas que ele propaga muito mais a partir, talvez, da Open University e que vão para os Estudos Culturais da Ciência, num certo olhar, que tendem a problematizar mais fortemente as questões epistemológicas da ciência, e aí nós já estamos entrando nesses autores mais contemporâneos, como Knorr-Cetina, Bruno Latour, que têm influenciado bastante aqui no Brasil, dentro dessa tendência que influenciou, que pelo menos influencia o nosso grupo de pesquisas, a partir de quem? A partir da professora Maria Lúcia, que é onde começa esse grupo que se radica no norte do Paraná, com uma certa preocupação com uma problematização epistemológica e vai se diferenciando um pouco talvez dessa questão mais ligada ao marxismo mesmo, das vertentes da literatura que começam a se movimentar aqui no Brasil. É assim? Você vê essa proliferação e essa influência dos Estudos Culturais da Ciência criarem um marcador de diferenciação em relação aos Estudos Culturais?


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Bom, eu acho que um não vem do outro. Eu acho que eles são na verdade duas tendências que correm paralelas, porque se a gente pensar esse livro do Latour, que é o "Vida de laboratório", que é um livro marcante, ele é um livro de 1980. Eu acho assim, marcante para o surgimento dessas discussões sobre Ciências sem dúvida, o Kuhn, o Feyerabend e o Lakatos, eu acho que são três nomes super importantes nessa discussão. Nos anos 60 o grande seminário, aquele que se faz em torno, inclusive, da estrutura das revoluções científicas, aquele livro do Kuhn que causou tanto furor que no final já tava arrependido de ter pensado na noção de paradigma, né (risos). Mas essa noção de paradigma, foi o conceito que, independente de ter gostado ou não de ter proposto este conceito, teve uma produtividade enorme, que eu acho que muitas ciências tentaram encaixar a sua forma de pensar nesse modelo que ele pensa para a Física inicialmente. Acho que aí tem um marcador importante nas discussões que se fazem sobre a Ciência, entende?! Até esse surgimento dessas discussões do Bruno Latour, eu acho que também tem um papel importante o Aronowitz no pensamento norte-americano, sobre essas discussões dos Estudos Culturais em Ciência. Em 90 a gente teve contato com David Hess, lá em Campinas, o pessoal de Campinas estava preocupado com isso de Estudos Sociais e Culturais da Ciência, isso em 2000, mas antes essa discussão acho que já tava no mundo. O grupo de Quilmes ali, na Argentina também estava estudando, fazendo trabalhos em cima dos estudos de laboratório, por exemplo, que eu acho que foram estudos que ficaram muito marcados pelo pensamento do Bruno Latour, pelo estudo do Bruno Latour mesmo, que tá relatado no "Vida de laboratório", depois no "Ciência em ação" e assim por diante. Mas, assim, e essa discussão que se instaura em torno do próprio trabalho do Latour e, eu acho, dos filósofos franceses nos anos 90, aquele polêmico livro né, aquele artigo que sai como uma paródia dos Estudos Culturais. Eu acho que todos esses momentos, eles foram momentos importantes para a discussão que se passa a fazer sobre a Ciência e esta ideia de que a Ciência é uma produção cultural como outras formas de produção cultural, quer dizer, eu acho que tá na chave da discussão e do descontentamento de muitos. Eu me lembro que na UFRGS eu fiz uma palestra, não me lembro se foi no salão de iniciação, não me lembro exatamente onde foi, onde tava o pessoal das exatas, eu comecei a falar sobre a noção de Ciência Revolucionária e Ciência Normal. Ah, tinha uma professora da área de Biologia que ficou, assim, indignada, com a noção de Ciência Normal, quer dizer, ela botou a Ciência Normal num patamar de inferioridade em relação à Ciência Extraordinária, que eu cheguei a ficar espantada (risos). Ela deve ter se situado no padrão de Ciência Normal e deve ter dito "bom, essa criatura tá dizendo que eu faço um trabalho absolutamente desmerecedor né" (risos). Bom, mas eu acho que tem essa questão de pensar na pureza daquilo que se faz, na importância daquilo que se faz como altamente inovador, e eu acho que é isso que os Estudos Culturais puxam o tapete, no sentido de mostrar que nós não somos tão inéditos assim como pensamos que somos, né, Moisés? Não estamos nesse patamar de ineditismo que muitas vezes nos colocamos. Quer dizer, bom, essa ideia de pensar que é uma construção cultural que se faz dentro de determinados contextos a partir de um conjunto de teorizações partilhadas por um grupo de sujeitos etc. e tal, que puxa um pouco a ideia de ineditismo, que muitos cultivam como seu trabalho mais importante. Bom, a coisa não é bem assim, né? Então, eu acho que existe uma série de conjunturas que vão levando a essa discussão sobre a Ciência que já está instaurada se a gente pegar a história da Ciência. O próprio Rose, que é irmão do Nikolas, que trabalha com Biologia, mas aí eles botavam uma questão vinda da teorização crítica, nessa crítica, mas pensando “bom, por que que se faz? Por que se investe tanto dinheiro num tipo de pesquisa?” Por exemplo, na fertilização, e não se investe na manutenção da vida das crianças miseráveis que tão lá sem dinheiro para serem alimentadas etc. e tal? Quer dizer, por que trabalhar com a fertilização in vitro e não trabalhar com outros temas? Que é uma coisa que o Rose já vinha dizendo, isso lá nos anos 80, e muito dentro dessa teorização crítica. Eu acho que, assim, essas outras teorizações, especialmente o pensamento filosófico francês que veio com Derrida, Deleuze, que vem com Michel Foucault, eles vão também de alguma forma mobilizar questões em relação a este pensamento da Ciência.

E, claro, eu acho que o Bruno Latour tem um papel importantíssimo nessa discussão, como eu acho que o Aronowitz tem no pensamento norte-americano, entende?! Um papel super importante de mobilizar, de fazer essas coisas serem discutidas. E aí surge aquela ideia, esses Estudos Culturais, não existe uma uniformidade também nisso. Quem passa a chamar de Estudos Culturais da Ciência é o Rose, essa denominação tá no Rose. O David Hess já faz uma gradação, ele vai estabelecer diferenças, então ele vai chamar de Estudos Culturais da Ciência esses que são fortemente impregnados por essas questões que dizem respeito a raça, etnia, pensamento geracional, essas coisas todas. Ele vai fazer uma diferença entre Estudos Sociais das Ciências e Estudos Culturais da Ciência, por exemplo. Que eu acho que o pessoal da Unicamp trabalhava muito mais nessa direção dos Estudos Sociais da Ciência, eu acho, não sei. Não sei se te respondi, Moisés, fiz uma longa conversa aí, não sei se respondi bem a pergunta.


Moisés Alves de Oliveira: Tá muito bom. Eu fiquei aqui com a pulga atrás da orelha, à medida que você inicia tua fala dizendo que são paralelas e eu te ouvindo, pensando "eu quero concordar com você". Assim, me parece que os Estudos Culturais da Ciência e os Estudos Culturais, é mais ou menos como falar de pós-moderno e pós-estruturalismo, sabe!? Agora eles parecem se confundir mais do que no início, né!?


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Sim.


Moisés Alves de Oliveira: Eles têm marcadores mais claros no início do que agora. Isso é inclusive uma das perguntas que um dos integrantes do grupo me pediu para fazer pra você.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Vamos lá.


Moisés Alves de Oliveira: Em termos deste deslocamento, ou seja, hoje os Estudos Culturais da Ciência e os Estudos Culturais parecem ter as fronteiras mais borradas ainda. Estudos Culturais começam a se redissolver de novo em outras tendências. Mais ou menos assim, nós entramos pelas bordas, demos uma rápida passada pelo centro e parece que voltamos para as bordas de novo um pouco dissipadas em outras ideias. Eu tenho muita dificuldade, por exemplo, aqui dentro do GECCE, de dizer que nós fazemos Estudos Culturais da Ciência, porque a gente faz uns tipos de estudos de mídia, outros estudos etnográficos, que parecem seguir linhas que são eminentemente ligadas a uma epistemologia mesmo, no sentido mais científico do termo, ou descrições de estudos de caso, que nós teríamos uma certa dificuldade de dizer que exatamente são de Estudos Culturais. Enfim, os Estudos Culturais da Ciência foram reincorporados dentro dos Estudos Culturais e agora estão sendo de novo reincorporados para essas vertentes mais acadêmicas, mais tradicionais da vida acadêmica. É assim que a gente tem percebido, é assim que você percebe, Maria Lúcia?


Maria Lúcia Castagna Wortmann: É, eu acho assim, por exemplo aqui, até por conta da dispersão do meu trabalho e do próprio trabalho do Alfredo que éramos quem trabalhava com isso mais inicialmente, e da própria Daniela que se incorporou, e Luís Henrique Sacchi dos Santos também é outro parceiro nesta direção. Quer dizer, nós fomos efetivamente sendo conclamados, eu diria, a trabalhar com outras questões, entende? Também, porque fomos para ULBRA, porque lá se expande um pouco a forma de trabalhar. Quer dizer, nós temos alunos muito mais diversificados, por exemplo, do que os alunos que nós tínhamos na UFRGS que entravam especificamente querendo fazer esse tipo de abordagem, entende? Que não é o caso da ULBRA, onde tu vais trabalhar orientações muito mais múltiplas. Bom, mas enfim, voltando, eu acho que nos dias de hoje tem uma vertente que surge ali na antropologia da UFRGS, por exemplo, que é a Antropologia da Ciência. Tem um grupo forte de Antropologia da Ciência, que tava inicialmente vinculado à Cláudia Fonseca, que é uma pesquisadora maravilhosa assim, eu tenho uma admiração enorme pela Cláudia Fonseca, pelos trabalhos que ela conduz e por tudo que ela fez, agora eu acho que ela se aposentou definitivamente, mas a Cláudia tem um papel fantástico no desenvolvimento da Antropologia. Se tu pegas o número de trabalhos que ela produziu, eu fiz uma interlocução com ela em um dos eventos do SBECE, é uma coisa assim 190 artigos, entende?! 170 capítulos de livro. Ela é uma coisa impressionante em termos e eles trabalham com essa Antropologia da Ciência que lida com muitos autores, com Bruno Latour inclusive, que eram autores que a gente considerava autores dos Estudos Culturais da Ciência. Então esse borramento de fronteiras, essas novas áreas que se estabelecem e que vão buscar discutir a Ciência, elas vão se multiplicando, entende? Me parece assim. Então, eu acho que, tem uma série de vertentes que tão preocupadas com essa discussão da Ciência. Aqui o que eu conheço é esse pessoal da Antropologia da Ciência que entrou fortemente nesse estudo enquanto que nós, que estávamos trabalhando como Estudos Culturais da Ciência, fomos de alguma forma nos afastando dos próprios Estudos Culturais da Ciência por contingências de trabalho acredito, e não por desinteresse. Quer dizer, ainda continuo com colegas que continuam a fazer alguns trabalhos nessa direção, mas que diminuiu muito, né, Moisés, diminuiu muito.

Eu acho que tu és um local de resistência e de presença desses estudos. E agora que o Alfredo e eu estamos saindo da nossa participação da UFRGS, eu também acho que esta vertente vai ficar muito mais esmaecida para mim dentro da UFRGS. Tem o Luís Henrique que continua, é um escritor potente o Luís. Eu acho que, assim fica nas mãos do Luís Henrique lá na UFRGS essa possibilidade de interação com essa vertente também.

Nessa altura nós estamos muito difundidos em termos das exigências que temos de trabalho, quer dizer, somos instados a discutir e N outras coisas ao lado disso. Então esse esmaecimento efetivamente aconteceu.

Não sei se eu te respondo, mas eu acho que, assim, alguns outros campos tão se apropriando dessas discussões. Eu diria que um campo desses é a Antropologia da Ciência, e claro que os Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia que eu acho que continuam ali fortes no grupo do Danilo lá da Unicamp, que também não seguem exatamente a mesma vertente que nós.

Existe uma difusão de interesses nessas discussões, alguns muito mais tentando mostrar a questão de como é que o econômico entra nessas discussões. Enfim, outros que vão entrar nessa discussão da Antropologia, a Cláudia tem um trabalho super interessante com os filhos dos sujeitos que viviam no Leprosário de Itapuã, aqui no Rio Grande do Sul, e com o que aconteceu com esses sujeitos. É um trabalho fantástico esse que ela faz sobre a Antropologia da Ciência e como é que esta coisa da Ciência separou esses sujeitos dos seus familiares, de alguns nem saberem que tinham parentes que tinham ficado isolados vivendo lá naquela colônia fechada, é um estudo muito lindo, eu tenho uma grande admiração por esse trabalho da Cláudia, e também as questões que ela pega em relação ao DNA da identificação de paternidade, as modificações que aconteceram na forma de pensar essa identificação de paternidade, quer dizer, outro tema que ela pesquisou que eu acho que tem a ver com essas discussões da Ciência dentro dessa dimensão mais antropológica que ela faz.


Moisés Alves de Oliveira: Bom, essa é uma percepção realmente interessante dessa vascularização. Em que você vê essa vascularização como positiva, é importante, porque ela vai numa direção que, ao mesmo tempo que ela fragmenta, ela mantém os Estudos Culturais em funcionamento.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: É, só que eles ganham outras denominações. Eles já tiveram tantas desde a origem, não é!? Nunca se chegou a uma unificação da denominação, nunca se chegou. Eles sempre foram múltiplos até na denominação.


Moisés Alves de Oliveira: O que deixa a pergunta que eu vou te fazer agora quase ridícula, mas ela tem uma importância para mim, também porque nós somos, eu a Daniele, o próprio Luís Henrique, uma espécie de segunda geração dos Estudos Culturais da Ciência aqui no Brasil. E a gente vê o Tomaz, no teu trabalho, no trabalho do Alfredo, que, para nós, são trabalhos pioneiros no Brasil para a área, aquilo que a gente defende para os nossos pontos de origem de graduação nas Ciências Exatas da Terra, Ciências da Vida, vocês são marcadores importantes, de certa forma é um renascimento quando a gente chega e retoma a partir de vocês, trata-se de um renascimento. Como é que você se sente, Maria Lúcia, sendo fundadora dessa linha de estudos aqui no Brasil?


Maria Lúcia Castagna Wortmann: É, eu não sei se eu sou fundadora de alguma coisa não, Moisés (risos). Quer dizer, a gente também se apropriou de uma vertente de trabalho que a gente achou potente, fazendo uma ligação com aquilo que fazíamos antes. Eu fui buscar nesta vertente de estudos uma forma de interrogar o meu trabalho, que eu acho que essa é a grande contribuição que os Estudos Culturais nos trazem, essa ideia de que é preciso interrogar o trabalho que se faz de alguma forma. Então eu acho que encontrei nessa vertente interrogações importantes sobre o trabalho que eu fazia com museus, o trabalho que eu fazia metodologicamente no ensino de Biologia. Então, assim, não sei se é fundador. Acho que tem um texto meu, que também é um texto que causou algum impacto, no sentido de mostrar que as metodologias são construções pedagógicas (risos), aquelas metodologias consagradas para o Ensino de Ciência, que advêm do método científico: a redescoberta, a formulação de problemas, o estudo por resolução de problemas também, que eram decantados em algum momento como "bom, tem que fazer Ensino de Ciências desse jeito. Esse é o jeito que o cientista pensa". Bom, o que que a gente botou no artigo? Esse é um jeito que a gente está dizendo que o cientista põe, que o cientista pensa (risos). Quer dizer, a construção que se faz em cima da própria ação científica, é o jeito que a gente tá dizendo que é uma construção pedagógica isso, eles são construções pedagógicas como são outras construções também. Quer dizer, "bom então tu tá botando abaixo toda uma metodologia que os centros de Ciência consagraram durante 20 e 30 anos, tu é uma bandida" (risos), nesse sentido de tá questionando essa metodologia como a melhor metodologia de trabalho. Tá bom, num tô questionando. Quer continuar fazendo assim? Continua. É potente? É, mas eu não posso dar um teor de verdade pra isso que não tem, entende? Eu acho que é esta a grande questão que se põe, de não atribuir aquilo que se faz o tom de verdade, botar exatamente o que nos ensina o Foucault, que ele tá dentro de um sistema que vai estabelecer como verdade, mas olhar desse jeito. Então, eu acho que essa é a grande contribuição que a gente pode ter trazido, de questionar essas abordagens que eram abordagens tidas como certas, corretas, únicas, indispensáveis para uma forma de fazer o trabalho de educação, por exemplo. Então eu não sei se sou fundadora de nada, tá, Moisés, mas, assim, acho que nessa discussão o meu trabalho foi interrogado por essas vertentes, e trazer essa interrogação para o meu trabalho é super importante. Uma menina uma vez me disse "ah eu li um texto seu antes, mas a senhora não dizia essas coisas", eu disse "ainda bem que não dizia essas coisas, porque se eu continuasse pela vida afora dizendo as mesmas coisas eu queria me matar" (risos). Eu acho que é isso que os Estudos Culturais, sejam eles da Ciência sejam eles Estudos Culturais de um modo geral, fazem de importante, esta ideia de que é preciso botar em questão aquilo que tá fazendo, aquilo que você tá dizendo, as crenças que se tem, e nunca pensar que essas são as definitivas e verdadeiras posições para as quais a gente tem que assumir para o resto da vida, eu acho que é isso que é importante.


Moisés Alves de Oliveira: Muito bem (risos), eu só tava esperando você me responder exatamente assim, mas de qualquer maneira, Maria Lúcia, querendo ou não, para nós, que somos de outra geração, a gente constrói um certo ponto de partida a partir do nosso olhar histórico, e toda vez que a gente vê ponto de partida o nome de vocês aparece. Aparece e salta aos olhos. E foi muito menos para nós aqui os trabalhos na área da linguagem do pessoal da USP, da Ana Carolina com os textos que ela escreveu sobre Estudos Culturais, as "10 lições sobre os Estudos Culturais", isso influencia menos a gente aqui, e muito mais o que vocês colocaram aí no Rio Grande do Sul, as influências dos trabalhos de vocês. Você teria uma ideia de por que que o Rio Grande do Sul se destacou tanto assim, foi tão forte? Quer dizer, o argumento enunciativo do Rio Grande do Sul acaba se tornando muito forte na forma com que os Estudos Culturais da Ciência se alastram pelo Brasil, mas talvez nem com tanta força assim, né, não se alastra tanto, acaba criando um certo regionalismo dessa discussão, é isso? Você entende assim?


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Sim, não sei. É, talvez. Tem alguns alunos nossos, eu lembro de alguns meus que foram para outros universidades que levaram essas ideias, a Shaula, que vai inicialmente para um uma universidade do nordeste e agora está na Universidade Federal Fluminense, a Marise Basso Amaral, que também tá na Federal Fluminense, que eu acho que continuam trabalhando com essa noção de Estudos Culturais da Ciência. Eu acho que alguns desses alunos, o Leandro, que também foi para Federal de Santa Catarina, que eu acho que continua trabalhando nessa direção, com esses estudos, pelo menos tendo uma referência em relação a eles. Mas não sei te dizer por quê. Na verdade, quando nos organizamos, nós éramos um grupo muito forte que depois se espalhou, eu diria, né, Moisés. Esse grupo se espalhou, e, ao mesmo tempo que ele se espalhou, ele enfraqueceu, no sentido de que novos sujeitos não apareceram, entende!? Então talvez isso, e também essa própria dispersão de interesses que nós somos levados a ter quando trabalhamos um programa de pós-graduação que tem uma dimensão mais ampla, que não é fechado dentro de matemática. Eu acho que vocês são muito mais fechados como linha de pesquisa e nós éramos mais espalhados, nós éramos dentro de uma linha de pesquisa uma tendência, e a mesma coisa dentro da ULBRA, uma pequena tendência dentro de um grande projeto de pesquisa, uma tendência. Então, assim, dentro dessa multiplicidade de possibilidades, claro que sempre tem. Eu acho que tem a Paula, Paula Henning da FURG, que também lida com essas questões quando trabalha com Educação Ambiental. Talvez a Paula Ribeiro, alguma coisa também. Fico pensando "quem mais?". Uma orientanda do Alfredo, a Schwantes (Lavinia), acho que também trabalha ainda nessa direção de Estudos Culturais de Ciência. Ela estudou museus, por exemplo. Então, assim, tem algumas nuances desses estudos em outros estudos, gente que trabalha com museu, gente que trabalha com Educação Ambiental, entende? É porque as tendências elas vão perpassando, então qual é a tendência que aparece mais? É aquela luta, as lutas de poder/saber, né, Moisés? Se a Educação Ambiental aparece mais fortemente, os Estudos Culturais da Ciência entram ali como mais um elemento da discussão, mas talvez o que apareça mais seja essa coisa da discussão ambiental, entende!? Porque ela tá mais fortalecida enquanto campo. Sei lá, eu tô pensando aí junto contigo, não tem mais explicação definitiva para isso, mas eu acho que as tendências vão se agregando, porque nesse artigo que a gente escreveu – o Luís Henrique, a Daniela e eu – agora publicado na Educação & Realidade, em 2019, uma coisa que a gente vai dizer é o seguinte: os Estudos Culturais brasileiros não figuram nas revistas internacionais, não figuram, não tem. Eu examinei todas as revistas. Aquela revista do Grossberg, que é a Cultural Studies, em uma edição tem Estudos Culturais Latino-americanos, em uma edição tem! Quem tá lá é o pessoal da Colômbia. A única menção que se faz a Estudos Culturais no Brasil é um pedido de desculpas dos organizadores do dossiê dizendo que eles não sabem nada sobre os Estudos Culturais no Brasil, então não tem nenhuma seção. Têm Estudos Culturais chineses, têm Estudos Culturais australianos, Estudos Culturais irlandeses, não tem nenhuma seção de Estudos Culturais brasileiros, por quê? Não sei, talvez porque a gente não mande para essas revistas, né. European Cultural Studies também não tem produção de Estudos Culturais brasileiros, não tem, nem da Heloísa Buarque de Hollanda, que é um nome grande, não tem, não têm artigos dela, não têm! Então "por que que não tem?” É uma pergunta. Por quê? Por que nós não mandamos artigos para essas revistas? Por que nós não divulgamos bem o que fazemos? Talvez porque estamos divulgando pouco, porque está muito restrita aos próprios grupos, então aí a revista de vocês é bem-vinda, mas é bem-vinda também num chamamento "vamos pra fora" também, tá certo?! Então, por que aqui não há essa difusão e essa expansão, né, Moisés? Não sei se somos nós que não estamos sabendo divulgar nosso trabalho adequadamente também, não sei. Esse desconhecimento, não sei. Inclusive, eu fazia pesquisas como bolsista de produtividade do CNPq, quando botei a dimensão de Estudos Culturais da Ciência num projeto, o meu projeto não foi aprovado.


Moisés Alves de Oliveira: Os meus também não são, fiz mais de um, não são aprovados. São reprovados porque discordam dos conteúdos... não sei.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Mas eu já era, entende? Eu já era. Eu vinha fazendo numa tradição de trabalho, eu tava na terceira renovação, e aí quando eu botei os Estudos Culturais, que era meu melhor projeto te diria, era meu melhor projeto de pesquisa, aí me mandaram reapresentar o trabalho. Quer dizer, têm algumas questões aí que são complicadas, eu diria, né, Moisés? Não sei te dizer por quê. Na verdade, uma conjunção de situações, de fatores, que eu acho que tem a ver com isso, ou o pessoal que, por exemplo, faz Estudos Culturais com teoria literária vai para teoria literária e não bota Estudos Culturais fortemente, quem faz Educação Ambiental fica sob o jargão da Educação Ambiental, entende? Quem faz Educação em Ciência fica no jargão da Educação em Ciência, e os Estudos Culturais da Ciência ficam subsumidos por essas outras grandes áreas, essa talvez seja uma possibilidade, também, ao lado dessas outras coisas que eu tava te falando antes.


Moisés Alves de Oliveira: Pois é. Uma situação que emerge a partir da sua fala é a questão da língua, no sentido de um Brasil monolíngue, um Brasil que fala aqui do nosso jeito a língua portuguesa, e mesmo dentro das academias a nossa potência em escrever em outras línguas é muito baixa, daí, talvez, uma grande influência que o Tomaz teve em se dar ao trabalho de traduzir todas aquelas obras. Então, a partir da tradução do Tomaz, o Brasil toma conhecimento dos Estudos Culturais de uma forma muito mais ampla. Esse monolinguismo, que é na verdade uma forma de fechamento cultural do Brasil, quer dizer, o Brasil se isola na América Latina, e a gente vê isso nos jornais, por exemplo, quando a moça do tempo vai lá e apaga toda América Latina, pinta o Brasil de uma cor diferente e fala "Olha aqui, a chuva tá chegando aqui pelo sul..", ninguém fala o que acontece na América Latina por conta de uma língua, por conta de um distanciamento cultural que o Brasil vai tomando em relação à própria América Latina quanto mais de outras regiões do mundo.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Uma coisa, Moisés, o Bruno Latour tem muitos livros traduzidos no Brasil para o português. O Bruno Latour! O Aronowitz acho que tem um artigo num livro, um livro que é uma coletânea.


Moisés Alves de Oliveira: Knorr-Cetina, por exemplo, o que eu tenho dela é em espanhol.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Pois é, não tem tradução para o português, não tem nada. O Rouse também não tem nada traduzido para o português, não tem nada, e ele tem uma montanha de artigos contemporâneos, entende!? Nenhum traduzido, nenhum. A Daniele e eu chegamos, inclusive, a tentar, fizemos contato com ele no sentido de tentar fazer as traduções, mas tu sabes que é muito complicado, essa coisa de tradução atualmente é muito complicada, porque tu tens que ter autorização do autor e, além de tudo, do editor, e normalmente eles te cobram um preço absurdo para te permitir fazer. Não é o autor que te complica a vida, mas é o editor do livro, de onde saiu o artigo, que complica, entende!? E eu acho que o Tomaz tinha, não sei se naquela época, mais condição de fazer isso, porque atualmente está ficando impossível fazer, Moisés. Acho que mais gente. Cheguei a fazer um movimento lá dizendo “nós temos que traduzir mais", mas efetivamente para botar a tradução, disponibilizar a tradução, nós temos que ter a autorização do editor. Eu e Daniela, nós chegamos a esse ponto e aí nós não conseguimos, porque tinha que pagar não sei quantos dólares, não sei quantos euros, entende!? Era um absurdo para conseguir fazer, então tem isso. Claro, o Latour tem um público amplo, então dele há traduções, bastante. Acho que as editoras se interessam em fazer, mas dos outros autores não há nada, não há nada. Acho que esse é outro problema, né, Moisés?


Moisés Alves de Oliveira: Sim... penso da mesma forma. Essa questão da tradução tanto de fora quanto para dentro do Brasil, se a gente vai estabelecer uma fronteira clara, quanto daqui pra fora, ou seja, nas formas de visibilidade. Recentemente nós publicamos um artigo na Cultural Studies of Science. Saiu agora, mas ele é de uma dissertação de mestrado de uma aluna minha que já fez doutorado comigo. Nós mandamos quando ela terminou o mestrado, ela já fez doutorado, há muitos anos que ela já tá na vida profissional, e depois de quase sete anos, o artigo, enfim conseguimos fazer, com milhões de correções, que ele fosse publicado, ou seja, muitos anos depois, ele sai, agora em 2021. Então é muito demorado, muito burocrático. Esse artigo, há uns 4 anos que ele desapareceu do radar, ninguém falava nada, ninguém dava notícia. Tem um monte de situações que estabelece uma certa periferia para o Brasil. Agora, a tua fala é bem séria, né, porque de fato nós precisamos reverter essa condição periférica do Brasil, inclusive na América Latina, dentro dessa área dos Estudos Culturais. Essa é uma questão que eu tinha posto pra você aqui também, mas eu estava pensando em termos de ambiguidade, ou seja, a própria condição de emergência da ambiguidade dos Estudos Culturais, que capturam um pouco o pós-estruturalismo para dentro das formas discursivas, fazem com que nós, de certa forma, não nos incomodemos com a ideia de uma profusão disso para dentro de outras áreas, como você disse bem, quando argumenta de os Estudos Culturais ficarem como uma forma de ferramenta, de inspiração ferramental para outros assuntos, as discussões ambientais, as discussões literárias, as discussões epistemológicas, os Estudos Culturais seriam uma espécie de ferramenta, timidamente citados nas nossas teses "Ah isso aqui é um trabalho sobre Estudos Culturais” e depois esquece aquilo lá e segue a vida. Dito, e para dentro dos departamentos, como é o que a gente vive aqui, de áreas mais exatas, essa periferia é ainda mais sentida, mesmo dentro de programas de pós-graduação fortes como é o nosso, os Estudos Culturais são tidos como uma periferia, às vezes até relativamente perigosa. E daí eu tava fazendo a pergunta: essa ambiguidade nos enfraquece do ponto de vista desse enfrentamento dentro de uma academia ainda provinciana e positivista, como é a nossa aqui no Brasil?


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Pois é, Moisés, uma boa pergunta, se essa ambiguidade nos enfraquece. Pois é, é porque na verdade a área também pretende se constituir numa coisa muito única. Quer dizer, essa ambiguidade vem da própria natureza, vamos dizer assim, que esses estudos têm de não querer se localizar, então não querer se localizar, não querer se transformar numa disciplina acadêmica como os demais. Vem dessa própria mobilidade que os estudos têm no sentido de ora se grudar na Antropologia, ora se grudar uma comunicação, ora se grudar na Educação, ora na Teoria Literária, aquela coisa dos estudos oportunistas, no sentido assim "eu vou pegar daquele campo que me interessa, eu não quero me transformar num campo específico nunca”. Então essa ambiguidade eu acho que vem daí, de não ser um campo definido, com fronteiras bem estabelecidas, com metodologias bem postas. Então vem daí, vem desse desejo de se manter assim, que é na verdade um ponto que eu acho que é um ponto de avanço, no sentido de possibilitar articulações múltiplas. Aquele livro de 2009, do Stuart Hall, é um livro muito interessante na medida em que ele vai efetivamente mostrar isto: com o que os Estudos Culturais podem conversar? E como é que essas conversações são oportunas, no sentido de pensar assim: então se eu converso com Derrida, posso conversar e o que que sai de bom disso? Se eu converso com Deleuze, o que que sai de bom disso? Essa tentativa de pensar quais são as articulações possíveis, conversar com os pós-marxistas, por exemplo, com o Négri, então com o Slavoj Zizek. Então quais são as conversações possíveis com esses autores? Então eu acho que é isso, talvez isso possa ser visto como ambiguidade, mas talvez isso possa ser visto também como uma modalidade de saber que busca se expandir, que busca se abrir, que busca nesse processo articulatório, que é o grande processo característico dos Estudos Culturais, é essa busca de articulação, né, expandir a compreensão que posso ter das coisas, como é que elas funcionam no mundo, então com quem que eu posso articular e com quem eu estou autorizado a me articular de uma forma produtiva? Quer dizer que essas são as grandes perguntas dos Estudos Culturais hoje. Grossberg tá sempre fazendo isso, os Estudos Culturais têm ainda sentido e eles merecem ter sentido? É uma das perguntas que ele faz. Tem sentido na medida em que conseguisse se articular com o pensamento contemporâneo, aí eles têm sentido. Bom, e aí a ambiguidade vem dessa ausência de uma delimitação de até onde eu posso ir, de qual é a minha fronteira, de qual é a minha fronteira teórica e de qual é a minha fronteira metodológica. Então, claro, para quem trabalha com certezas isso é visto como ambiguidade, mas é ser visto como habilidade a partir de um ponto de vista que é o ponto de vista de quem lida com esse tipo de pensamento, o pensamento que requer a certeza. Todo pensamento que admite que a certeza é uma construção que se dá dentro de determinados contextos, determinadas posições que eu ocupo num determinado momento não é ambíguo, (risos) não é ambíguo. Então é isso, ele pode ser visto como ambíguo, mas eu acho que nesta possibilidade articulatória que tá a potência, ainda está a potência do campo. O campo é potente porque ele se abre a inúmeras articulações, por isso ele é potente. Se ele se fechasse, ele se transformaria numa disciplina profissional também, que é esta a grande ambição que os Estudos Culturais têm de não se fechar em limites disciplinares. Não sei se te respondi (risos).


Moisés Alves de Oliveira: Bom, Maria Lúcia, o panorama hoje é, vamos chamar de ambíguo na falta de um termo melhor, de muitas contradições, do mundo das mídias, por exemplo, quando você pega um sujeito que defende ao mesmo tempo uma condição moral e ética do ponto de vista da própria estética da existência e ao mesmo tempo defende Terra plana, então esse sujeito que defende um genocida, digamos assim, defende um genocida ao mesmo tempo em que defende as igrejas, de formas extremamente fortes, e vai defender a ideia da vida, de autonomia, a ideia de um sujeito centrado, de um sujeito dono de suas articulações, como “a minha opinião” por exemplo, “eu tenho minha opinião, eu preciso ser respeitado enquanto indivíduo” e nega a vacina como uma forma de resistência, como uma forma de vida. Ou seja, é um espaço bem contraditório se a gente usar a definição de ambiguidade que você fala, ou seja, é só alguém muito conservador que vai ver isso como contraditório. Abre-se novamente um grande espaço para os Estudos Culturais da Ciência se renovar enquanto um espaço, nessa pergunta do Grossberg, “a gente ainda faz sentido nesse mundo?”.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Eu acho que sim, né. Eu acho que, assim, a gente tá com prato cheio para pensar nessas contradições nesse momento, não é?! Acho que, assim, têm alguns colegas lá do programa da ULBRA, o Zago tava pensando nessas discussões não é!? Acho que Moysés também tá. O Moysés, só que ele é Moysés com Y. Mas ele também tá, efetivamente, entrando. A própria Carla tá entrando nessas discussões, então eu acho que sim, tem um campo muito produtivo para a gente pensar neste momento, não é?! Nessas questões da mídia, por exemplo, de como essas mídias tão permitindo que alguns sujeitos que estavam calados há algum tempo ganhem uma projeção dentro de um grupo de outros sujeitos que tavam calados e sem encontrar uma voz que nos mobilizasse, que mobilizasse aquelas ideias. Essas ideias podiam estar apagadas, mas elas estavam circulando por aí, eu acho que, talvez, o nosso grande erro é não ter visto isso de uma forma mais clara, de ter achado que havia muito mais consenso em torno de certas formas de pensar do que é importante, o que é ético, o que é moral. Achamos que existia consenso muito maior do que na verdade existia. E essas vozes ganharam dimensão, ganharam força, ganharam adeptos que a gente não pensou que ganharia, e como é que essa mobilização se dá e em torno de quê que essa mobilização se dá, né? Há que pensar sobre isso, acho que pensar sobre isso. Acho que o Eagleton (Terry), faz umas discussões bem interessantes lá naquele livro dele, que ele vai fazer uma espécie de um balanço, o que que faz avançar, o que que não faz avançar os Estudos Culturais? O que que a teoria cultural tá fazendo hoje? O que ela permite? Ela deu voz para quem? E no que que ela exagera? Eu acho que tem uma discussão bem importante aí que o Eagleton traz, que é o "Depois de teoria" o livro que eu tô falando, acho que o capítulo primeiro vale, traz algumas discussões muito interessantes em relação a o que os Estudos Culturais trazem em relação à questão de gênero, de raça, de pós-colonialismo. Eu acho que ali têm discussões ótimas que ele traz, sobre como a gente examina essas questões, questões como essa por exemplo, que está se colocando, que tu estás colocando. Não sei se respondi à pergunta, mas temos um prato cheio aí pela frente para discutir, viu, Moisés!? Numa interlocução com esses estudos de comunicação, eu acho, e também com essa coisa de saber um pouco da história social, a história das sociedades, como é que se constrói essa história dessas sociedades. Eu sempre fico pensando lá na Arendt, que eu acho que é uma autora que volta e meia tá ecoando uma frase dela, em relação às coisas que estão acontecendo aqui neste momento. Então acho que essa necessidade de olhar para esses estudos que pensam nestes contextos sociais fortemente e essas coisas que parecem ser contraditórias e que nos chocam. Como é que esse pensamento emerge, quais são as condições que têm se dado para que esse pensamento volte com essa força. Em 2019, eu tive com a Marisa e com a Rosa na Alemanha, nós fomos a Dresden, e em Dresden nós vimos uma coisa que nos apavorou naquele momento, que era uma passeata neonazista que tava reunindo pessoas da Alemanha inteira. Com a bandeira do nacionalismo, entende!? Que outra coisa que parece fortemente ligada a essas questões, a essa história do fortalecimento do pensamento nacional, da unidade, da nação. Enfim, e a gente ficou apavorada, assim, com a quantidade e com a organização, bem coisa de alemão, né. A passeata funcionava das 7 às 9 horas em ponto (risos). Nós estávamos em um hotel que ficava em frente à estação ferroviária e começou a descer aquela multidão. Nós saímos do hotel e eu disse "mas o que que tá acontecendo?", tavam descendo aquelas criaturas cheias de bandeiras, entraram na passeata organizadamente das 7 horas às 9 horas, voltaram para seu trem. Mas é apavorante tu veres aquele movimento das criaturas, que viveram aquela situação. Agora, Dresden saiu de um regime nazista para um regime comunista, então tu ficas pensando "o que é que isso significou para a vida dessas pessoas lá?". Quer dizer, de novo um cerceamento de liberdades, sei lá, e que coisa, sim, é um prato cheio para examinar essa situação né, numa cidade como essa ou Leipzig. Então, assim, eu fiquei encantada com essa viagem. Essa viagem foi uma viagem maravilhosa, assim no sentido do que a gente viu, andamos pelo interior da Alemanha, a Rosa, a Marisa e eu (risos), mas enfim, discutindo todas essas coisas vendo produções culturais maravilhosas, mas, e também, se dando conta do que aconteceu nessa nação, porque a gente visitou algumas cidades que saíram mesmo desse domínio nazista para o comunismo. O que que aconteceu com esses grupos de sujeitos? E é lá nessas cidades que o neonazismo tá aparecendo com enorme força, o que que aconteceu? Então cabe olhar pra isso, Moisés, sem dúvida, e acho que os Estudos Culturais têm toda condição de se meter nessa jogada, entende!? Claro, que buscando aportes nessa coisa da história das sociedades, da sociologia. Sem dúvida, são as articulações que se fazem necessárias. Não sei se te enrolei ou se te respondi (risos).


Moisés Alves de Oliveira: Bem, como nós estamos falando de mídia e eu gostaria de, inclusive, avançar um pouquinho nessa discussão. Talvez a gente retome ela num segundo momento. Você cita o Josep Rose como um sujeito que vai influenciar, que vai marcar o termo "Estudos Culturais das Ciências", mas ao longo do que eu te conheço, ao longo do movimento que você vem fazendo, das pesquisas, dos seus interesses de pesquisa que vão se deslocando para a mídia, eu enxergo mais o Martín-Barbero, só para citar alguns marcadores. Aconteceu isso, né? Quer dizer, o Josep Rose pode ser uma espécie de totem fundador, mas é o Martín-Barbero que manda na tua forma de olhar o mundo, é isso?


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Pois é, até não sei se é bem isso, é, não sei. Eu até não pensaria que seria Martín-Barbero, acho que ele tem algumas discussões super importantes, mas eu não sei se é ele mesmo. Eu acho que até o Canclini me orienta mais do que o próprio Martín-Barbero, entende? Eu fiz, claro, aquela leitura intensa do "Mídias e mediações", que é aquele livro importante do Barbero, e de outros mais, o “Ofício de cartógrafo”, são alguns que eu lidei. Mas eu acho que o Canclini, até ele tem mais importância assim, especialmente quando ele põe ali em “Culturas híbridas” essa noção de hibridação, que eu acho que essa é uma noção que para mim foi super importante em termos de compreensão de como é que os conceitos funcionam, não é!? E como é que as interações sociais funcionam, quer dizer, então, até o Canclini tem mais força, vamos dizer assim, influenciando nos estudos que eu faço do que o próprio Barbero. Eu acho que eu sinto mais o Canclini, especialmente a partir dessa ideia que ele traz da hibridação, quando ele fala desses encontros interculturais. Eu acho que aí tem uma potente vertente pra gente considerar, para esses processos de hibridação com os quais nós nos defrontamos a todo instante, a todo momento. Então acho que existe mais Canclini, Néstor Canclini, do que Martín-Barbero, certo!? (risos) Daquilo que eu faço, especialmente nos últimos tempos, começa com essa incorporação da noção de hibridação, que eu acho que é um conceito super importante, que tá ali um pouco pensado já, a origem, talvez, “Da diáspora” do Stuart Hall, que ele vai trazendo essa noção também, mas eu acho que sim, talvez dos latino-americanos, o Néstor Canclini.


Moisés Alves de Oliveira: É o que vai te dar uma direção. Interessante.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Sim, é especialmente para pensar essa coisa dos encontros interculturais. A Rosa e eu, a gente até fez uma disciplina sobre isso, acho que foi muito boa, assim, nesse sentido de nos levar a pensar o quanto é importante pensar nessas hibridações que decorrem dos encontros interculturais, que nós estamos a todo momento vivenciando.


Moisés Alves de Oliveira: Martín-Barbero, que é um desses autores que influenciam aqui na América Latina, dá essa dimensão da questão das mediações. Ele retoma a ideia de mediações e alerta para nós do grande perigo de nós ficarmos restritos à ideia dos meios e esquecermos como essas mediações, ou seja, é um território bem mais difícil de trabalhar, que são as mediações, que numa certa licença poética nos daria também a noção de híbrido, mas Martín-Barbero tem um interesse, um foco de pesquisa ligado às mídias, que vai na direção das mídias como uma força muito grande. E o Canclini, com o conceito de híbrido, vai deslocando a gente, também, para as noções de rede do Latour, assim, a noção de híbrido em Latour é também muito forte. Eu tive muita influência desse salto, eu encontrei dentro do conceito de hibridação em Michel Serres, e em Latour da noção de rede, para discutir essa questão do híbrido, que me aproximou um pouquinho mais da perspectiva científica por conta das influências do próprio objeto de pesquisa do Latour. Se a gente pensasse de ponto de vista da análise do Martín-Barbero, que é uma análise mais cultural e mais ligada às mídias, corremos o risco de nos afastarmos da análise da atuação da própria Ciência, das discussões epistemológicas, das preocupações que são típicas dos nossos colegas que fazem as ciências, vamos chamar de ciências duras. Nos afastamos por conta dos objetos? Ou seja, não somos capazes de fazer uma boa interlocução sem sermos muito influenciados pelos objetos dos autores que a gente trabalha?


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Pois é, uma boa pergunta, deixa eu pensar (risos).


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Não, eu acho, assim Moisés, que é esse concentrar-se nos processos, quando o Barbero fala dessa coisa das mediações, eu acho que também uma coisa é coincidente com o Canclini, no sentido de "bom, o que nos interessa não é o híbrido. O que nos interessa é o processo de hibridação".


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Como é que isso se dá? Quais são as condições que se põe para que essa mediação aconteça, né? Que eu acho que é um pouco isso, quais são as condições que se dá para que essa organização aconteça. Eu acho que se a gente vai olhar a importância de olhar para os processos. Não sei se tô te respondendo, mas eu acho que se a gente olhar para os processos, os autores, eles, as teorizações servem para que a gente olhe para os processos, então seu olhar para as mídias e como é que as mídias lidam com essas questões da Ciência, por exemplo, como é que isso se processa. A gente acabou mesmo uma dissertação agora, de um aluno meu, ele vem dos direitos e ele trabalhou com aquele crime ambiental lá do Brumadinho e como é que em determinado período a Folha de São Paulo falou deste crime ambiental, como é que ela falou e pra quem ela deu voz. Então ele pegou diferentes seções do jornal. Desde a seção de opinião até as outras seções, que são seções que outros sujeitos podem falar. Fez primeiro uma abordagem de reportagem, e depois transitou pelas seções de opinião, enfim, em outros setores do jornal. Bom, concentrou em um determinado período, e aí o que que se diz sobre esse crime ambiental? O que que se diz sobre ele? Quem é que fala sobre ele? Entram aí os discursos, se for usar a noção de discurso, entram os discursos mais variados, desde um discurso jurídico até um discurso que é da economia fortemente que só vai valorizar as questões que dizem respeito aos prejuízos ambientais, aos prejuízos que isso causou, por exemplo, à própria mineradora. Então, se a gente olhar para os processos, olhar para essa situação a partir de uma multiplicidade de discursos, acho que a gente não corre esse risco, porque a gente vai procurar olhar como é que se pensa, o que seja, qual é a importância que se dá para o ambiente, para ambiental, para ética ambiental, qual a importância que se dá para os sujeitos, para os populações numa situação como essa, e a gente vai ver o rompimento de discursos, o Estado falando aeticamente sobre essas responsabilidades ou escapando dessas responsabilidades com os sujeitos. Bom, eu acho que é isso que interessa, entende!? Olhar para essas situações, pra quem tá falando, o que que se está dizendo sobre elas, aí tem uma questão, que é uma questão que é da Ciência, que é assim: bom, quais eram os riscos que havia naquela situação? Os riscos eram sabidos? Os riscos não eram sabidos? Eram sabidos, sim, os riscos eram sabidos, tinham sido calculados e estavam sendo ignorados, quer dizer, então a Ciência entra por aí. Mas aí tem até um professor de Universidade, lá da USP, que vai falar lá pelas tantas "ah, de como é que um engenheiro, qual é a responsabilidade do engenheiro numa situação como essa", tirando assim, puxando a coisa assim para ética profissional para escapar da questão da responsabilidade que o sujeito possa ter. Então puxando questões que são de natureza epistemológica da própria engenharia, do que significa ser engenheiro, para tentar atenuar a culpa daqueles que de alguma forma minimizaram os riscos, entende!? Então eu acho que se tá trabalhando com questões que dizem respeito à Ciência, como é que está usando essa questão da Ciência nesse caso específico para justificar uma minimização de riscos, por exemplo? Como é que se está usando isso? Qual é a invocação que está fazendo? Como é que ela entra aí? Acho que a Dani escreveu muitas vezes sobre isso, sobre essa coisa, se a Ciência, ela é salvadora ou ela é vilã, porque ela aparece nessas publicações com essa representação, muitas vezes. Então um feito científico vai sendo enaltecido, e aí a gente pode mostrar o que que tá fazendo com que haja esse enaltecimento e como é que as questões aí que preocupam os cientistas, de um modo geral, como é que a Ciência está sendo denegrida? Não é? Nessas publicações. Enfim, eu acho que é sumamente importante continuar olhando para essas publicações e como é que a Ciência transita por lá, entende? No sentido de mostrar esse trânsito, que direções se dá e que uso se faz da Ciência nessas instâncias. Acho que esse é um papel político dos Estudos Culturais, de ir lá meter o olho na notícia e olhar e explorar essa notícia sob um ponto de vista que um leitor comum não vai conseguir fazer, entende? Achar essa intertextualidade nesses materiais, e mostrar, apontar para ela, apontar para os tipos de argumentos que tão circulando ali, circundando a Ciência. Eu acho que sim, uma questão como essa estaria também, essa questão do risco e dos cálculos que foram feitos, o que foi considerado, o que não foi considerado, quem é que desconsiderou, qual é o papel do engenheiro nesse cálculo, como ele fica com a voz abafada, ele não grita. Quer dizer, qual é? Qual é o papel?


Moisés Alves de Oliveira: Muito interessante. Que bom te ouvir em relação a isso, Maria Lúcia, eu acho que vai ser uma inspiração para quem vai te ler nessa entrevista em termos de como os Estudos Culturais não podem perder de forma alguma o olhar político, o olhar interessado, o olhar das relações de poder que nos marcam, conforme foi dito lá naquela introdução mesmo do "Alienígenas".


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Grossberg. É o Grossberg e a Paula Treichler.


Moisés Alves de Oliveira: Isso... Que mostra, uma das grandes pegadas dos Estudos Culturais é se manter sensível às coisas cotidianas, às problemáticas. A resistência dos Estudos Culturais da Ciência é se manter sensível ao cotidiano. Bom, e como é que são tuas preocupações daqui para frente, sabe? Como é que você pensa e como foram essas tuas preocupações ao longo da sua carreira? E o que que você pensa que são os Estudos Culturais daqui para frente? Onde é que a gente precisa se articular enquanto um campo de lutas, um campo que tenha de fato importância dentro da percepção cultural mais ampla?


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Eu acho que tem que continuar olhando para essas questões, entende!? Questões que são polêmicas como este estudo, por exemplo, que a gente fez sobre o caso de Brumadinho, que a gente pensa um crime ambiental, muito mais até do que um crime ambiental, ele é um crime contra a vida. Mas, enfim, eu acho que uma questão como essa, por exemplo, merece ser olhada. Acho que essas discussões que a gente viu, que perpassam as mídias contemporâneas, esse reaparecimento dessas posições reacionárias, acho que tudo isso merece ser olhado. Acho que nós temos que caminhar nessa direção e em relação às questões da escola, de como é que a Ciência também vem sendo pensada neste momento tão complicado que ela assume um papel, talvez nos últimos tempos não tenha assumido um papel tão preponderante quanto nesse momento. Quer dizer, tá dependendo das ações da Ciência, do trabalho, dos cientistas, a tentativa de conter essa pandemia, de conter esta tragédia nacional, tá na mão. Ainda bem que tem um Butantã, ainda bem que tem a Fundação Oswaldo Cruz no Brasil, não é!? Ainda bem que tem INAMPS no Brasil, e INSS, ainda bem que existe essa rede pública de atendimento, porque é disso que a gente tá dependendo nesse momento. A gente tá dependendo, é desse grupo de médicos abnegados, que não são negacionistas, que tão tentando efetivamente manter esses sujeitos vivos a partir desta tragédia nacional que a gente tá vivendo nesse momento. Chegamos a esse ponto por um desconhecimento, por uma falta de iniciativa do governo, por uma negação do governo, de pensar de uma forma séria e importante isso que estava acontecendo no começo dessa pandemia. Enfim, eu acho que temos que nos ocupar dessas coisas, temos que nos ocupar disso, é disso que faz parte a nossa vida. Acho que é isso, assim, o que eu puder fazer com que os meus estudantes ainda continuem olhando para essas questões, essa é minha tarefa ainda nesse momento, de tentar mostrar como essas questões merecem ser olhadas e como elas são difíceis de serem olhadas, e como eu tenho que puxar teorizações potentes para poder lidar com elas. Que não é um caminho fácil, não é um caminho fácil, é um caminho difícil, porque eu preciso transitar em muitos campos para poder explicar situações complexas como essas que a gente tem vivido nesses últimos tempos, né, Moisés. Mas eu acho que não dá para botar bandeira branca (risos). Não dá para hastear a bandeira branca. Acho que é isso, tem que continuar na luta enquanto a gente tiver força, vamos pra lá, é isso aí (risos).


Moisés Alves de Oliveira: Ótimo. Maria Lúcia, deixamos de fazer para você alguma questão que você julga interessante?


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Acho que tá tudo okay, Moisés. Foi um prazer conversar com vocês, estou disponível para esclarecimentos outros que sejam necessários daqui para frente. Então é isso aí, foi um prazer estar com vocês hoje.


Moisés Alves de Oliveira: O prazer é todo nosso.


Maria Lúcia Castagna Wortmann: Bom trabalho. Parabéns pelas iniciativas, parabéns pela resistência, parabéns por continuar interessado nessas questões tão importantes que temos aí, para discutir sobre a Ciência.


Moisés Alves de Oliveira: Nós é que agradecemos. A resistência vem de um histórico, ela tem história e ela passa por vocês com certeza, e nós é que agradecemos as motivações, a inspiração pela resistência. Maria Lúcia, o que é que eu posso dizer de uma conversa como essa, né? Fantástico te ouvir de novo, ver e pensar junto com você. Assim, o trânsito que você tem por tantas áreas, uma visão tão ampla, o espectro do qual você olha é muito amplo. Agradecer de novo por você ter se dado ao trabalho de entrar para esse campo que me encantou desde que eu comecei, me fez migrar da UNISINOS para a Federal, assim, pelos bastidores, eles não podiam saber disso, então fazia tudo isso escondido, porque me encantei com essa discussão desde o início. Obrigada e parabéns.

16 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comentarios


bottom of page