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Entrevista com Alfredo da Veiga-Neto




Graduação em História Natural (1967) e em Música (1963) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; mestrado em Genética (1975) e doutorado em Educação (1996) pela mesma Universidade. Professor Titular da Faculdade de Educação da UFRGS. Professor Convidado Permanente do PPG-Educação/UFRGS.





Moisés Alves de Oliveira: Bem-vindo, Alfredo.


Alfredo Veiga-Neto: Muito obrigado pelo convite, muito obrigado por essa interlocução que nós temos há muitos anos, via Moisés. Aprecio muito essa pegada de sair daquela coisa enferrujada de que a educação seja libertadora, seja libertária, seja crítica, que são muito interessantes; mas essas tendências de fazer uma mistura, fazer uma abordagem, sobre as questões educacionais, sobre educação escolar, sobre ensinar e aprender, sobre currículo, enfim, sobre didática; fazendo isso, nos alimentamos de outras áreas do conhecimento, de outras práticas das ciências, das humanidades, melhor dizendo, ou mesmo das ciências naturais. Então eu acho muito interessante. Moisés sabe muito bem que o grupo do qual fiz parte durante muitos anos - eu estou aposentado, na verdade eu estou aposentado há 23 anos e durante 22 anos, depois de aposentado, eu continuei como professor colaborador convidado permanente. Eu tinha um contrato com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no qual eu me responsabilizaria, como me responsabilizei, durante esses 22 anos depois de aposentado, dando pelo menos um seminário por ano e aceitando seminários de 4 créditos no mínimo, eu sempre dei dois até três, mas no mínimo um - eu conto isso para vocês verem como é minha inserção institucional burocrática - e me responsabilizando por projetos de pesquisa, que tinham que ser submetidos a cada 2 anos, e por orientados. Tive orientandos de mestrado, de doutorado, cotistas e não cotistas, antes de me aposentar e depois continuei com isso como, digamos, um hobby, como uma possibilidade (eu brinco, mas é mais ou menos isso), como uma possibilidade de manter o Alzheimer um pouco mais afastado, um pouco mais em suspenso, e assim eu estive até o ano passado.

No início do ano passado, bem no início da sindemia - que eu não chamo mais de pandemia, sigo o Lancet para chamar de sindemia - eu, de fato, cansei, não com meus alunos, não com meus seminários, mas cansei com a Universidade Federal. Cansei, não me desiludi, eu não tinha uma ilusão que foi perdida, eu tinha um ambiente e esse ambiente foi perdido, está sendo perdido aceleradamente, então eu me afastei, pedi cancelamento, finalização da minha situação de colaborador convidado permanente, terminei as orientações, e suspendi meu Lattes, já está fazendo praticamente dois anos que eu não mexo mais no Lattes, não preencho mais formulários, não respondo mais questionários da universidade, não voto, não sou votado - não posso - e até pela Covid eu não fui mais lá.

Mas, enfim, essa é a minha situação, e eu continuo com meu grupo de pesquisa, com meus ex-orientandos e alguns outros agregados, com os quais eu faço reuniões quinzenais às sextas-feiras, e estou passando a coordenação desse grupo, que se chama Grupo de Pesquisa em Currículo e Contemporaneidade (GPCC), porque a nossa questão central é entender as transformações daquilo que se chama de currículo, envolvendo, inclusive, as políticas educacionais e também a didática e as transformações dentro da contemporaneidade. Então continuamos nos reunindo o ano passado inteiro, este ano também. E com as pessoas que são orientandos de outros colegas fazemos reuniões há bastante tempo, desde antes da sindemia fazemos reuniões online. Eu me mantenho ainda ativo, aceito esses convites generosos que vocês me fizeram, e faço algumas ‘lives’, algumas coisas, e mantenho o Portal FOUCAULT et alii que eu criei em 2013 e é um portal inteiramente gratuito que agrega filmes, textos, teses, dissertações, dicas, fotos, enfim, no campo dos estudos foucaultianos, não é só Foucault, o que me mandam eu vou agregando ali. É um portal que tem 50 a 90 consultas diárias, do mundo inteiro.

Eu deveria alimentá-lo mais regularmente, mas tive um problema de saúde em dezembro passado, nada a ver com Covid, tive uma arterite (um negócio misterioso, complicado, autoimune) no nervo óptico esquerdo e fiquei cego do olho esquerdo e isso me dá muita limitação, me dá muita irritação, às vezes me dá muita desolação. Eu conto isso para vocês entenderem (aqueles que acompanham o Portal Foucault e o seu Twitter) que o portal Foucault está muito devagar, mesmo assim tem muita consulta, porque tem muito material, é muito rico, e assim a gente vai levando.

Então, com isso eu fiz a minha apresentação, e algumas coisas que eu vou dizer aqui e que pode parecer um “exagero” de caminhadas diferentes, de estudos diferentes, encantos diferentes, se deve a uma curiosidade que eu tenho, muito forte mesmo, desde muito jovem por novidades - e eu estou há muitos anos nesses trajetos e com isso eu posso acumular muita coisa feita, muita coisa dita e pude estudar muitas coisas e, ultimamente, tenho publicado no campo dos estudos foucaultianos, já trabalhei com isso com a ciência e agora, de uns anos para cá, eu tenho trabalhado com estudos foucaultianos e a música, porque eu sou também graduado em Música. Não esqueçam a estrada é longa, por isso que eu vi aí “mais e melhores Blues”[1] e eu gostei. Eu estudei, dei cursos inclusive, sobre Jazz e também sobre Blues, então eu gosto muito dessas coisas.

Feitos esses comentários, digo também que, nisso tudo, eu tive a sorte de encontrar alguns e algumas colegas que foram providenciais na minha caminhada: alunos e alunas, colegas e professores que me ajudaram, me provocaram a ver coisas de maneiras pouco convencionais no campo da Educação. No grupo da nossa linha de pesquisa “Estudos Culturais em Educação”, do qual faz parte a Maria Lúcia (uma pessoa chegada a vocês, chegada ao Moisés e eu) mais a Marisa Costa, Tomaz Tadeu da Silva, Rosa Silvera, Sandra Corazza, enfim, nós formamos um núcleo inaugural dos Estudos Culturais no Brasil, na década de 90 (1992/1993), quer dizer, isso tem 30 anos, e aí começamos a fazer coisas e me interessei. Vou explicar porque - um pouco de “confissão” - ainda como um biólogo, trabalhando com instrumentação para o Ensino de Ciências, Teoria Crítica do Currículo, e a Prática de Ensino de Biologia tive contato com algumas pessoas que foram importantes, no instituto de Filosofia e Ciências Humanas desta universidade aqui. Uma foi a professora Anna Carolina Regner (já falecida) e vários outros, mas um que me estimulou muito a olhar a ciência, a prática científica, de uma perspectiva não cientificista, mas muito chegada aos estudos culturais foi o professor Thomas Kesselring, de quem eu fui aluno e sou amigo até hoje, e tem o professor Edie Cassell que esteve conosco aqui em Porto Alegre durante uns 4 anos, ele foi muito importante, ele me apresentou Paul Feyerabend, que é um precursor dessa pegada culturalista (ele não é fundador dos Estudos Culturais ao molde inglês, mas, sem dúvida nenhuma, ele é um culturalista na sua leitura sobre a prática, sobre as atividades, sobre a produção da ciência).

Por isso tudo, quando cheguei aos Estudos Culturais, eu já tinha alguma familiaridade com essas leituras, uma parte filosófica, das filosofias da diferença (lá com o pessoal da Filosofia, não do pessoal da Educação), me alimentei lá, e com essa pegada culturalista, esse olhar, essa leitura culturalista da atividade científica como mais uma atividade cultural, felizmente destronada de uma posição de supremacia sobre os outros saberes, mas entronada numa atividade cultural muito peculiar, e a qual nós temos que respeitar de maneira diferente a que respeitamos o Blues, ou respeitamos a história, ou que respeitamos a filosofia ou a psicologia, enfim, como vocês quiserem.

Digamos, essa é a pegada que veio, essa atmosfera o Moisés respirou muito aqui em Porto Alegre na época que esteve aqui, me lembro bem. Mas hoje, infelizmente, está numa situação quase periclitante. Felizmente, de uns 3 a 4 anos para cá (no máximo), entrou uma turma nova na Faculdade de Educação interessada no campo dos Estudos Culturais, felizmente porque aquela velha turma, da primeira geração, todos nos aposentamos (os que não morreram se aposentaram) e muitos continuaram, como eu, mas todos aqueles que continuaram já saíram também, já não estão mais ligados ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, e essas temáticas dos Estudos Culturais não são feitas em outros locais da minha universidade.

O que vale é que algumas pessoas que saíram daqui e foram para outros lugares continuaram com essa pegada, e essa turma nova, que tá entrando agora, que está fazendo muito bem, é bastante competente, mas muito iniciante nesse olhar que eu chamo de “culturalista”. Às vezes eu não gosto muito de falar assim Estudos Culturais como se fosse a la Grossberg… esses caras que são fundadores, mas isso tem que andar para frente. Uma cultura anda para frente.

Uma das vantagens dos Estudos Culturais é justamente essa mobilidade, esse nomadismo, para usar uma expressão do Deleuze, esse nomadismo em pensamento. E isso é muito bom.

Eu acho que em parte a polícia - agora vai uma crítica e tomara que ninguém me tome mal, é uma crítica que nos ajuda a compreender o motivo pelo qual os Estudos Culturais não colaram muito na América Latina de um modo geral. Claro, eu sei que têm os colombianos, têm os mexicanos interessantes nos Estudos Culturais, mas são poucos, e no campo da Educação menos ainda.

Vejo o pensamento educacional, e isso quer dizer filosófico, na América Latina como um pensamento que não é conservador, mas, ao mesmo tempo, inclusive no Brasil, é muito mais interessado por questões tradicionais. São interesses e pesquisas importantes, sérias e bem-feitas, da filosofia, da educação e da filosofia da educação. Realizadas de forma muito cuidadosa, de importância sociológica, muito interessantes. Mas apegadas às tradições. Agora mesmo, um colega nosso do Rio de Janeiro está interessado em montar publicação, me envolveu nisso, eu não tenho mais nem saúde para fazer, tenho todo o interesse para fazer uma análise, assim, a fim de promover uma filosofia política da educação, não uma filosofia da educação porque a Filosofia da Educação no Brasil tem uma pegada muito forte, prescritiva, idealista quando não estruturalista, e muito inspirada em mitos judaico-cristãos. É uma maneira de fazer a coisa, okay, não tem problema, mas eu acho que temos que investir, nesse campo, mais no que se chama “filosofia política da educação”, não filosofia da política, mas filosofia política. E aí, eu acho esse interesse de algumas poucas pessoas no Brasil um interesse muito promissor, então é uma coisa que vai dar frutos, é necessário fazer, mas eu já disse para ele que eu não tenho mais saúde, ele me deu um prazo infinito, mas meu prazo também não é infinito, de nenhum de nós é, eu acho que eu não estou com coragem de sentar e começar a estudar essas coisas.

De resto, tudo isso para dizer de onde vim, por onde passei, onde é que estou nesse momento. Eu, quando comecei a estudar Foucault (isso já faz 30 anos), comecei a me interessar por um tipo de pensamento que é nitidamente não estruturalista. É pós-estruturalista? Okay!? Eu tenho um pouco de implicância com prefixo “pós”, mas é “pós-estuturalista”, mas é não estruturalista, isso sim. Também não é “anti”, não é anti nada, quem quiser fazer o que quiser faz o que quiser. Mas é um pensamento que se afina muito com essas posturas não metafísicas, seria o termo melhor para usar aqui, que não parte de uma fundamentação filosófica, nenhuma fundamentação religiosa, que ao contrário de uma fundamentação só vê portos de passagem. É a expressão que eu costumo usar, copiando de um livro do João Wanderley Geraldi. Enfim, eu acho que isso é uma coisa interessante e os Estudos Culturais numa filiação não marxista, mas que pode aproveitar coisa de Marx. Esse é o ponto! Não é antimarxista, é não marxista, mas que pode aproveitar elementos do marxismo.

Esses Estudos Culturais têm muito a ver com os estudos foucaultianos, e no início eu não me dava conta disso, não me dava conta, depois fui me dando conta, de uns anos para cá, que têm a ver. Mas o que eu tô trabalhando mesmo é em estudos foucaultianos, pegando algumas ferramentas de Michel Foucault e escrevendo sobre isso, pensando, por exemplo, o mito de bolsoburro, vocês me desculpem, mas eu não consigo dizer o nome de batismo, eu falo “bolsoburro”. O mito bolsoburro está esperando para ser analisado numa perspectiva foucaultiana, por exemplo, sobre mito. Eu ainda fiz uma fala há dois dias sobre isso, usei 15 minutos da minha fala sobre isso. Temos muito para pensar o presente, aquilo que Foucault chamava de “história do presente”, para o nosso presente no Brasil hoje para compreendermos que a única forma de combater com alguma eficiência é compreender o inimigo. O inimigo fica incólume se nós usarmos ferramentas tradicionais. Tem um autor que eu gosto muito (eu vou dando essas dicas para quem tiver interesse pode ir atrás) que foi traduzido no Brasil um livro só dele, que é o Alain Touraine, é um professor do Collège de France em Paris, está muito velho agora, mas produziu algumas coisas muito interessantes e um livro primoroso dele a editora Vozes traduziu, se chama “Pensar outramente”. O Alain Touraine diz que o livro dele é dedicado, justamente, a fazer um alerta de que à medida que a história anda - e a história é contingência, não é necessidade, portanto ela é imprevisível - nós precisamos adaptar ferramentas do pensar, ferramentas que já tínhamos, ou inventar novas ferramentas para pensar.

Essa pegada é nitidamente foucaultiana, nitidamente de Feyerabend, nitidamente desses caras pós-estruturalistas, porque não tem uma estrutura onde a gente vai se encaixar, tem uma ‘geleia’ geral onde a gente vai nadar, e não se encaixar a estrutura do pensamento, fixa e enferrujada. Então esses caras, como Deleuze, como Foucault, por exemplo, como Feyerabend ou como Rorty na filosofia, como Ian Hacking na ciência, eles estão nessa vibe do Alain Touraine, que é pensar de outros modos, inventar, pensar de outros modos. Se quisermos ver luta de classes, por exemplo, ao molde marxista (não é que não haja luta de classe) nós não vamos compreender o presente, o presente fica incompreensível; para compreender melhor, é preciso fazer essas junções, para isso tem muita gente trabalhando, muita gente trabalhando no mundo inteiro, e mesmo aqui no Brasil autores interessantes, e mesmo traduções no Brasil muito importantes para o campo da política, para o campo da educação, para o campo da ciência inclusive.

Isso é, de certa maneira, estudos culturais das ciências.

Devemos manter presentes aqueles estudos que são importantes, mas precisamos nos atualizar, aliás um cara como Bruno Latour é bamba nisso, como Michel Serres, são caras bambas nisso, bons nessas atualizações e nessas sensibilidades, percepção, de pensar outramente - “outramente”, não se usa isso, mas pensar de outros modos, inventar novas ferramentas, afinar, afiar todo ferramental que foi produzido desde a antiguidade para construir as pirâmides… enfim, os barcos para navegação, todo ferramental que passou a Idade Média, que entrou na Modernidade, é importantíssimo, mas ele tem que ser revisto, tem que ser atualizado, e temos que inventar novas ferramentas.

Como é que eu vou produzir um mouse desses? Como é que eu vou produzir sabendo tudo que eu puder saber dos artesãos medievais? Não vou produzir esse mouse! Vou ter que ter outras ferramentas, outras ferramentas conceituais e outras ferramentas mecânicas, elétricas e tal para produzir qualquer dessas coisas contemporâneas, para produzir esse copo de vidro dessa maneira. Bom, isso aqui [o copo de vidro] os medievais produziram talvez até melhor do que nós (risos). Mas, enfim, isso que parece tão óbvio no campo da tecnologia tem que ser estendido para o campo da ciência e para o campo da educação, e eu acho que é nesses núcleos de estudos culturais que se trabalha essa sensibilidade de ver o não visto, de olhar de outros modos, de pensar de outros modos. Bom, então aí tem novidade aí vale a pena. Infelizmente isso é minoria, isso é minoria, enfim. Eu falei demais nessa apresentação e agora me coloco à disposição de vocês (risos).


Moisés Alves de Oliveira: Eu penso que na tua apresentação foram abordados vários dos temas de nosso interesse, agora mais para o final, você toca em um deles, que é “como os Estudos Culturais servem para alguma coisa no contemporâneo?” a partir da tua experiência em Foucault. Você acaba de dizer, claro que tem. Mas parece que estamos meio sem pernas para fazer uma parceria, como você propôs em um artigo[2], uma aproximação dos Estudos Culturais com Foucault, por exemplo, de ver como eles se tornam produtivos para fazermos uma analítica desse tempo presente, e parece que há duas coisas em funcionamento. Uma delas está relacionada ao que disse há pouco: “quando nós começamos nós tínhamos um grupo forte”, não há dúvidas, quando vocês juntaram aí Marisa, você, o Tomaz e muitos outros e outras, foram de um tipo de produtividade singular porque traziam traduções de obras, produziam intelectualmente textos importantes que são referências até hoje. E isso ajudou a vascularizar esse pensamento no Brasil. Mas embora hoje existam grupos que trabalham nessas perspectivas, e eu vou dizer que aqui em Londrina nós somos um desses, mas nem de longe a gente tem a mesma pegada, sabe, Alfredo?! Então houve neste processo de arregimentação, como diria o Latour, de aliados Brasil afora, uma certa vascularização e parece que os Estudos Culturais se diluíram bastante nessas teias e a gente não tem hoje grupos realmente com “pegada” para instituir uma direção mais clara. Não é, por exemplo, o caso do GECCE, eu enquanto docente, enquanto pesquisador, eu trabalho sozinho, ninguém na universidade se interessa por esses assuntos, muito ao contrário, quando veem alguém da área, costumam passar para o outro lado da calçada, cumprimentam de longe: “aoh companheiro, não faço nem ideia de como cumprimentar alguém dos Estudos Culturais” e seguem a vida. Então esse “enfraquecimento” me faz perguntar: os Estudos Culturais ainda têm alguma importância nesse panorama para dar alguma resposta para o modo como vivemos politicamente, culturalmente?


Alfredo Veiga-Neto: Eu não tenho dúvida que sim! Mas temos que andar, temos que caminhar e pensar, inventar, ser inventivos para criar essas outras ferramentas. Por exemplo, não sei se é uma linha, mas um viés - um viés parece uma coisa que saiu para o lado? Não. Parece uma coisa central, importante que foi feito durante muito tempo no nosso grupo de Porto Alegre. Eu digo “nosso”: do qual eu fiz parte tantos anos (meu Deus, desde 1991/1992, trinta anos). Foi uma proposta do Tomaz criar o grupo de pesquisa, criar uma linha de pesquisa “Estudos Culturais e Educação” e aí essas pessoas que tu citaste, que eu citei, fundamos a linha. O Tomaz ficou mais de um ano com a Guacira Louro, depois saíram procurar seus caminhos, e nós continuamos e nesse período publicamos muita coisa, foi lançado o primeiro livro Crítica Pós-estruturalista e Educação, que nós ficamos em dúvida: “Estudos Culturais e Educação” ou “Crítica pós-estruturalista”. Como nós tínhamos ali alguns capítulos, como o meu, que não eram dos Estudos Culturais, nós optamos pelo título Crítica Pós-estruturalista e Educação. Isso causou um mal-estar forte na época, porque imagina: os caras estavam “crítica é crítica marxista”, “crítica é Escola de Frankfurt”, “crítica é Habermas”, “crítica é Paulo Freire”, e vêm esses caras aí falar em crítica pós-estruturalista e com textos ali dentro que já eram Estudos Culturais (o meu não era). Então causou um baita mal-estar. Essas histórias de não cumprimentar e tal (risos), de desconfiança, claro, isso é o ambiente acadêmico, porque você sabe que o céu é pequeno para tanta estrela e o ambiente acadêmico tem muito estrela - nós somos estrelas - então o céu é pequeno (risos).

A complicação na época, isso tudo complicado com o fato de que um dos caras que era muito ativo, que era o Tomaz, têm um temperamento muito combativo, muito intransigente, na verdade mais do que isso ele era um cara de briga, isso então complicava um pouco. Ao mesmo tempo, também atuava para abrir frentes e, além disso, ele era extremamente produtivo, rigoroso. O rigor é muito importante, é muito importante, não é a fixidez, não é rigidez, é o rigor (eu já escrevi sobre isso, tá por aí, não sei onde). Então ele foi muito produtivo, ele traduzia muito, organizava livros, e organizava a partir de revistas numa época que não tinha Google, que não tinha e-mail, que não tinha nada disso, era muito difícil, era muito difícil mesmo, mas ele fez tudo isso e foi muito importante, muito bom, muito importante e muitos de nós éramos vistos como já “esse é da direita, ah isso é gente da direita? Porque não são freireanos, porque não são piagetianos”, porque não são os dois grandes pilares (hoje ainda, em parte, pilares) da pedagogia do Brasil. Um pilar construtivista e um pilar progressista, freireano - essa perspectiva freireana que produziu coisas muito interessantes, mas que também enferrujou em alguns pontos o pensamento educacional, mas, claro, a história é feita dessas coisas, é feita de coisas muito boas e de ruídos, e de coisas nem tão boas. Na nossa área de Estudos Culturais foi assim, quer dizer, foi uma luta grande na universidade, mas fomos arrumando espaço e ganhando espaço, um exemplo bem da época, bem da época, quem é que podia imaginar que a pesquisa educacional fosse se interessar pelo formato das janelas e da posição das portas das salas. Essa bibliografia nacional no campo da Educação, também no campo dos Estudos Culturais, foi substanciosamente engordada muito pela produção que o Thomaz fazia. Fazia em casa, artesanal, eu ajudei algumas vezes, escrevi capítulos e algumas coisas que ele produziu, mas eu não tinha, digamos assim, a aplicação que ele tinha nisso e isso fortaleceu o grupo.

Muita gente veio para o grupo e que agora está num caminho um pouco diferente e que também algumas pessoas confundiram o “tudo vale” do Feyerabend, em Contra o método, com “qualquer coisa” e não é qualquer coisa. Não é qualquer coisa, tem que haver competência e rigor, não pode sair dizendo qualquer coisa. Confundiu necessidade com contingência e coisas assim. Então houve algumas perdas no nosso grupo, mas o grupo se manteve, até acho que agora está se fortalecendo. Uma coisa que quero dizer, uma fase, uma fase importante, mas que nós temos que superar é, por exemplo, a noção de “representação”. No estilo de Stuart Hall, de quem eu não gosto muito, diga-se de passagem, eu não sou fã do Stuart Hall, acho que ele tem problemas filosóficos, de argumentação, enfim, mas é importante, é importante e escreveu coisas muito interessantes e eu acho que tem que saber lê-lo. O conceito de representação para os Estudos Culturais é muito bom. E aí eu acho que foram feitos trabalhos em excesso - é a minha crítica, outros têm outras críticas, tudo bem, eu não vou brigar com ninguém, mas ficamos muito tempo nisso: “representação do negro na revista X”, “representação da professora homossexual ou do professor gay na novela das oito”. Então isso foi importante, interessante, eu acho que é um bom exercício, mas isso tem que ir adiante, isso tem que ser superado. Superado, no sentido de otimizado, visto, aprendido, “está aqui a biblioteca, está aqui as coisas feitas”. Importante? Okay! Agora vamos para outros problemas.

Então, com isso, eu estou utilizando a experiência do nosso grupo de Estudos Culturais como um lamento? Não! Eu não lamento que tenha sido feito, eu mesmo orientei trabalhos, o último que eu orientei foi sobre a imagem dos deficientes físicos que participam de paraolimpíadas num programa X de televisão, no mestrado. É um bom treinamento para futuro pesquisador e tal, é interessante, é bom, é um trabalho bem-feito, bem documentado, tem início, meio e fim, tudo certinho, mas não é um trabalho de fronteira, não é um trabalho de invenção, é um trabalho de repetição, que também vale, tá?! Mas que não leva para adiante, para o campo dos Estudos Culturais em Educação, mas é o que essa minha orientanda quis fazer, podia fazer num mestrado, são dois anos, então ela fez isso. Quase nada a ver com Foucault, não tem importância, foi um trabalho bem-feito, tudo com A, com estrelinha e tal e se insere bem dentro dos Estudos Culturais, [ela analisou] o programa da Fátima Bernardes, ela se tornou especialista em Fátima Bernardes. Uma coisa interessante! Eu nunca vi um programa da Fátima Bernardes, mas eu orientei o trabalho dela (risos), eu disse para ela “eu oriento, mas tu não me obrigas a conferir” (risos). Então, trechos e trechos de textos, ela tem um material riquíssimo. Aquilo para uma pesquisa no campo do jornalismo seria excelente, ela já entrou no mestrado com esse material coletado e coletou mais um pouco e aí trabalhou. Dois anos de Fátima Bernardes! É um programa diário. Um dia eu dei uma espiada, é um negócio que não tem nada a ver comigo! Mas enfim, e aí ela foi pegando as enunciações da Fátima Bernardes sobre paraolimpíadas, sobre deficientes, tá. Isso ajuda a formar uma cultura nacional a favor ou contra os deficientes, é verdade. Tem essa importância. Mas não leva muito adiante, ainda que muito bem-feito, fica o elogio, mas é um perfil que nós que temos grupos de pesquisa temos que coordenar, que eu tinha que coordenar.

Mas Moisés, vocês que estão nessa tarefa tem que se dar conta que é necessário levar adiante, eu acho que ainda tem muito espaço. Claro, dentro desses trabalhos tradicionais, esse da revista. Isto é interessante, é importante e ainda tem muita coisa para ser feita, claro que tem.

O material é muito rico, o material disponível, a fonte, que deve ser transformado em material de pesquisa e depois ser transformado em corpos (nível já acima) é muito farto e tem muita coisa para ser feita.

Não é um campo em extinção. Absolutamente. Mas eu confio que devem ir adiante nessas frentes, trazendo para os Estudos Culturais outros autores que não são da tradição, mas procurando inseri-los numa tradição culturalista, eu acho que temos que fazer isso.

Por exemplo, nos Estudos Culturais da ciência, temos material riquíssimo no que tem acontecido nos últimos dois anos no Brasil, que tem acontecido também no mundo. Por que os franceses não querem se vacinar? Por que os texanos, os caras lá em Idaho, no fundão dos Estados Unidos, aquela parte obscura dos Estados Unidos, não querem se vacinar, não se vacinam? Não querem, fazem campanha contra, e por que o governo do bolsoburro faz isso que faz? Entende?

E burrice aí é diferente de ignorância.

Para quem ainda não me escutou falar nisso, eu escrevi sobre isso[3], foi publicado aqui e também nos Estados Unidos, eu faço uma nota de rodapé fazendo essa distinção entre ignorante e burro. O burro é o estulto. Burro é o nome que nós damos … inclusive ofendemos o animal. Mas o burro, palavra técnica, vem do latim stultus, significa “aquele que tranca o pé no chão e não sai do lugar, aquele que é redundante, aquele cuja ideia é fixa: não vou fazer, não vou aceitar ou eu acredito que um mais um é três e pronto”. Você argumenta, acha que ele está convencido, daí a pouquinho ele volta e diz “um mais um é três”, esse é o estulto, esse que tem a mesma raiz da palavra estar, da palavra estado, da palavra stay no inglês, do verbo stay, stay here: fique aqui, pare aqui, não se mexa daqui, não avance, não pense porque pensar sempre pode ser coisa nova, então fique com o pensamento antigo, ou seja, não pense tá?! É o mesmo radical de ‘poste’, interessante isso, mesmo radical, que é o radical stal do indo-europeu, que tem no alemão, que tem no Russo, que tem nas línguas latinas, línguas germânicas, línguas anglo-germânicas, nas línguas eslavas, que é esse mesmo radical, que é estamento, estar.

Um poste!

Estulto é isso, estultice ou estultícia, mesma coisa em português. Tem uma carta (essas coisas são muito interessantes) em que Séneca escreve a um discípulo, um correspondente dele, o Lucílio, me parece que era a quinta carta, ele comenta: não seja estulto e fuja dos estultos, porque os estultos são piores que os ignorantes. Para os ignorantes, tu explicas, tu falas e ele vai aprender, mas o estulto não quer aprender porque não pode aprender. Bom, traz Séneca para o século XXI, nós vamos ler lá em Oliver Sacks, vamos ver lá Nicolaides, vamos ver sei lá eu ... naquele português que tá nos Estados Unidos há muitos anos que estuda neurofisiologia, tu vais ler que a estultice é uma deficiência na integração de áreas cerebrais diferentes.

Um cara que gosta de blues e que conhece blues tem que fazer integrações, integrações entre a poética e entre a música, e no caso da música vamos falando, como exemplo, do blues do delta do Mississipi, blues raiz, digamos assim. Hoje qualquer coisa aí dizem que é blues. Bom, mas o blues raiz, aquela estrutura de três versos, em que cada verso tem quatro compassos e tem dois versos que se repetem e o terceiro resolve aquilo que é dito no verso um e dois que são iguais, a solução posta uma antinomia no um e no dois, e depois o terceiro verso, então o cara tem que conhecer um pouquinho de filosofia, um pouquinho de lógica, um pouquinho de dialética, (um pouquinho = bastante) de música, de harmonia, de saber quais são as ‘peças’ fundamentais, quer dizer, “vai para quinta, vai para quarta, vai para quinta, volta para fundamental”, tá? Tem que saber poética, tem que saber métrica poética, quer dizer, é isso aí. É isso aí que precisa ser feito por quem não é estulto. Quem é estulto não sabe nada disso. Não entende. Pode até gostar, mas não entende o que está escutando, e quem gosta mesmo tem que ir lá na história de onde que vem isso, como surge, por que surge nos Estados Unidos na segunda metade do século dezenove, por que usa aqueles instrumentos, enfim tem um campo enorme aí aberto, para ser feito, mas precisa, no caso do blues, como no caso da política, como no caso da covid, como no caso dos Estudos Culturais, como no caso de Foucault, como no caso de qualquer coisa, precisa ter inteligência, inteligência é falta de estultice, ou seja, chama-se inteligente aquele que faz boas integrações, não é aquele que é informado (tem que ter informação, é óbvio, mas tem que saber trabalhar a informação).

E uma parte da estultice pode ser devida à estultice desse governo, que é profundamente estulto, pode ser tido como falta de ética, como maldade, como mentira, como simples mentira, assim como aconteceu ontem nas notícias sobre a vacinação de jovens. Mentira: foi dito metade da coisa, metade da frase, tinha uma vírgula e o cara não disse o resto. Pararam aí. O Queiroga parou aí, então não vamos mais vacinar. Isso é maldade, mas no fundo tem uma estultice. Ele não disse [o que a OMS escreveu] depois da vírgula, “não se deve vacinar quando não houver vacina suficiente para os adultos”, pronto. Tem maldade. Maldade e maldade burra, estulta. Eu sempre peço desculpa para os muares. Então é por isso que eu uso essa palavra estulto. Tem uma passagem de um colega francês, do centro Michel Foucault em Paris, o Frederic Grós, tem uma passagem em que ele comenta o que é estultice, são dez linhas, mas é muito bom.

Nós estamos vendo esses personagens que comandam esse nosso país. Mas enfim, eu já tô divagando demais, saí dos eixos, mas eu não posso deixar de falar e não posso deixar o meu recado de indignação que logo me tomam por lulista, por coisa que eu não sou, quero deixar bem claro, mas me tomam e azar. Bom, chega, chega de política, vai lá, Moisés.


Moisés Alves de Oliveira: Tá ótimo, Alfredo, fica à vontade para dizer das suas posições. Na tua fala você traz a experiência de quem viveu muito tempo e de quem foi muito produtivo e é muito produtivo ainda. Mesmo que você tenha se desligado quase completamente da vida acadêmica, esse fantasma vai te perseguir porque nós vamos continuar te convidando para as coisas e a academia não vai te abandonar (risos). Muito bom, penso que você nos dá uma lição muito interessante: é preciso manter a mente criativa, funcionando, atenta às coisas e com vontade de testar as fronteiras. Pensar de outra maneira, eu acho que essa é de fato uma condição central para os estudos culturais. O Entusiasmo de pensar de outra maneira para poder ver as fronteiras e seguir adiante o projeto, é uma grande responsabilidade, mas que nós, enquanto grupo de pesquisa, precisamos absorver, com rigor, com comprometimento, com engajamento que se faz necessário para que essa criatividade nos leve adiante. Isso fica muito claro e não vem de alguém que tirou essa perspectiva das vozes da cabeça, é alguém que pode falar. O Alfredo viveu e produziu dentro dessa perspectiva e a gente precisa levar a sério e ouvir. Uma vez fui seu aluno em um curso que você ofereceu na UFRGS, e numa das falas você dizia o seguinte “olha, o Paulo Freire não sabe o que está falando, o Paulo Freire tem problemas”. Como nesse ano estamos homenageando o centenário desse educador brasileiro, eu quero recuperar aquela sua fala, posto que você mesmo traz o tema: “olha o Paulo Freire se equivoca quando ele vai numa determinada direção” e a direção eu vou deixar para você dizer, caso queira. Te provoco também com relação a essa ideia do próprio Marx. Ou seja, em muitas passagens você diz “olha é preciso seguir adiante com Birmingham, é preciso seguir adiante, há pouco você dizia, porque a ideia de poder, por exemplo, muito forte nos fundadores do grupo dos Estudos Culturais em Birmingham tinha raízes dentro de uma perspectiva, no mínimo, neomarxista. Faço essa provocação para te ouvir, pela perspectiva de relações de poder foucaultiana que passa numa outra direção em relação ao pensamento marxista do próprio Paulo Freire. Temos atualmente duas situações, primeiro o centenário do Paulo Freire e segundo, aquele ministro da educação que eu também me nego a decorar o nome! Aquele sujeito que olhou lá da janela do Ministério da Educação e falou “mas que homem feio esse Paulo Freire, a gente precisava tirar essa estátua daqui” evocando todo o panorama de uma direita rancorosa. De uma direita burra?! Para usar a expressão que você nos traz, minha provocação é: não seria o caso de recuperar um pouco dessa perspectiva tanto do marxismo quanto do Paulo Freire como ferramentas? Ou a gente precisa seguir adiante com as perspectivas pós-estruturalistas? Nós precisamos continuar sendo inventivos a partir de um olhar realmente foucaultiano, do Latour etc.? Eu te pergunto por que isso está afetando, atravessando o nosso grupo de pesquisa, sabe? De vez em quando, a gente tem um estranhamento aqui no grupo por conta dessas vontades de se reagrupar nas lutas de classe.


Alfredo Veiga-Neto: Eu acho que o engajamento é uma coisa importante, tem que gostar, tem que descobrir essas novidades para inventar ferramentas e para fazer releituras de um Paulo Freire, que é importante, interessante, tem que ser inventivo. Tem um negócio no Feyerabend, mas tem também na paradigmatologia do Thomas Kuhn, que é um conhecimento, digamos, trivial para os biólogos evolucionistas (trivial para evolução do séc. XX), nas releituras de Darwin que fizeram (isso os biólogos fizeram muito bem-feito), os evolucionistas ainda leem Darwin com os olhares de hoje, não para julgar Darwin, mas para mostrar que muita coisa ficou de Darwin até hoje e muita coisa ficou para trás. Eu pego esse exemplo de Darwin para responder para o Moisés, é o caso de Marx. Uma coisa do Feyerabend, que tem no velho Thomas Kuhn e que tem nos biólogos evolucionistas do século XX, principalmente depois da década de 1940 em diante, chamada teoria sintética da evolução, uma coisa muito interessante é que a novidade vem da periferia. Isso não é uma lei da natureza, mas é uma observação empírica confirmada, permanentemente, as novidades vêm da periferia. Ou seja, uma espécie ocupa um espaço físico ou ocupa um nicho, que alguns acham que é simbólico, um nicho, pode ser o mesmo espaço físico, uns usam de dia, outros de noite, mas ocupam o mesmo nicho, ao mesmo tempo e no mesmo espaço (nicho ecológico). O núcleo dessa população se mantém coeso, mas a possibilidade de evolução fica nas populações marginais, “as franjas” como os biólogos dizem, as margens, tanto por chegada de genes estranhos (estranhos àquela espécie) quanto pela possibilidade de variações que se dão numa margem não se misturarem com as variações que se dão na outra margem, que vai haver uma disrupção, que se chama “evolução disruptiva” de novas subespécies e depois espécies novas, que os biólogos sabem há oitenta anos. Sabem bem sabido, bem documentado. Eu fui biólogo, minha dissertação de mestrado era também sobre isso, era com drosófilas, e outros fazem com outros, é assim. Então a especiação humana se deu graças a migrações que tiraram populações humanas, pequenas populações, das populações maiores que se mantiveram mais estáveis, que evoluíram com menor velocidade ou que evoluíram menos perceptivelmente, mas que evoluíram também; mas foram; para longe, que se afastaram aqueles que deram origem ao processo de raciação, e que talvez levasse até a uma nova espécie. Pois é, fazendo uma certa analogia! Se vocês, como eu, lerem os neomarxistas, vocês verão que eles fazem uma atualização de Marx, mas as atualizações de Marx mais interessantes que eu acho vêm não desses marxistas, mas vêm de outros lugares. Vêm da periferia, que não teve necessariamente uma formação marxista.

É como se injetasse novidade. Eu acho que com o Paulo Freire é a mesma coisa. Uma coisa é o instituto, a sociedade, o grupo Paulo Freire, canônico, chamado canônicos, que são fiéis ao mestre e tal e que fazem aquilo e fazem bem-feito e é interessante, é necessário e colocar Paulo Freire no seu tempo e no seu espaço, tá? Importante. Agora eu tenho visto fazendo coisas com Paulo Freire muito interessantes, por exemplo, um colega nosso que vem de outro lugar, que não foi um freiriano, digamos assim, e que fez doutorado aqui conosco é que o Carlos Ernesto Nogueira, que vem da Colômbia da Universidade Pedagógica Nacional de Bogotá, que vem de outros lugares, traz uma fertilização, um arejamento, ele está estudando Paulo Freire e escrevendo sobre Paulo Freire lá na Colômbia. Isso é muito interessante. Paulo Freire não está morto, Darwin não está morto, Jesus Cristo não está morto, Elis vive, tem aqui em Porto Alegre tudo o que é muro durante muitos anos teve Elis vive (Elis Regina que é daqui). Elis vive, não precisa botar que ela vive, ela ainda vive, ela vende, as pessoas escutam, então não morreu.

Aí, quer dizer, o que ele fez está aí e foi reapropriado, foi relido, foi reestudado e não é só que ele é escutado, mas que ele deixou descendência intelectual, descendência musical, descendência compositiva? É e não só ele, mas outros se vocês quiserem de outros campos também. Eu acho que o que serve para eles serve para Foucault, eu sempre insisto, ser foucaultiano é não ser foucaultiano, que parece uma contradição. O Moisés já deve ter me escutado dizer isso “ser foucaultiano é não ser”. Casualmente eu tô aqui com Microfísica do Poder, boto o livro embaixo do braço, aí a Gabriela diz alguma coisa, a Susan diz outra, o Alex outra e tal, e aí eu vou lá no livrinho: “Como é que disse o mestre?” Não! Isso é um comportamento interessante, mas é um comportamento ligado ao mito, à religião. Essa é a grande diferença, das grandes diferenças entre religião e ciência. A ciência tem muito de religião? Sim, sim, tem, tem muito, muito. Botou para dentro dela, muita coisa da religiosidade, tá? Mas essa parte da seguir o mestre é algo que devemos fazer com muito cuidado. Então tem uma frase de Foucault que diz assim: “o autor não existe”, existiram não mais do que meia dúzia de autores na tradição ocidental, ele disse que autor é aquele que abre um campo totalmente novo e uma perspectiva totalmente nova. Isso existe. Mas isso existe nas margens de um grupo digno de uma comunidade, de um campo para usar a palavra técnica de Pierre Bourdieu, um campo científico, do campo artístico, do campo filosófico. A grande inovação da filosofia moderna foi operada por Nietzsche que era um autor, claro, e Nietzsche não era filósofo, Mendel não era botânico, não era nem cientista, Mendel era um monge e hortelão (cuidava da horta no mosteiro), Einstein era fraco em matemática e não foi no Instituto de física nem foi na universidade que ele desenvolveu a teoria geral da relatividade, e naquela circunstância da vida teve a sorte de casar com uma mulher que era uma exímia matemática e que ajudava muito ele na parte da formulação matemática. Nós temos um bom exemplo com o Isaac Newton e Einstein. Einstein, em relação a Newton, faz uma ruptura paradigmática, para usar o velho Kuhn, inventa uma nova maneira de ver o mundo, entendimento de mundo, maneira de ver o mundo, mas Newton não foi posto fora. Os cálculos astronômicos de trajetória de foguete, de satélite, viagem para lua, viagem não sei para onde, tudo isso é feito com física newtoniana. E agora? O que serve para Newton na ruptura de Newton/Einstein serve para o Marx. Marx partiu de outros princípios, que são abandonados por nós, de uma necessidade. A história tem um motor estranho conectado a ela, Marx descobre o motor: a luta de classes, que era muito forte no século XIX. É preciso estudar história da filosofia, da política para ver por quê e de onde é que ele tira a luta de classe, porque servia muito no século XIX e serviu muito no século XX, mas tem muito mais coisas do que a luta de classe e circunstâncias mais importantes do que a luta de classe. O que eu vejo às vezes, lendo alguns marxistas que eu já não leio mais, é uma tentativa de eles dizerem que não, mas ainda é luta de classe em tudo? Na classe econômica, agora a classe de gênero é a classe da coisa, mas alguns vão objetar: “não, mas essas coisas são muito complicadas”, muito mais complicada do que reduzir? Reduzir a um fator, além do que a história não tem motor, a história não é necessidade, a história é contingência. Aconteceu, aconteceu e nós olhamos para trás e organizamos e narramos o acontecimento como se houvesse um fio condutor. Mas trata-se de uma fita de rupturas. Estou tentando responder ao Moisés para dizer: releiam esses caras.

Nosso colega de Bogotá tá relendo Paulo Freire. Ele e o grupo dele (tem o grupo de pesquisa lá que tão produzindo). Temos muito contato, a gente tem sempre ‘lives’. Contudo, eu não quero fazer isso que ele está fazendo. Mas não é porque eu não considero correto, certo e produtivo. Retomemos a palavra que o Moisés falou: Engajado. Rigor e generosidade também. Generosidade com o que o outro produziu, o que o outro escreveu, com respeito, não é porque eu não gosto daquele autor ou daquela pegada que eu vou desrespeitar. Eu vou desrespeitar se ele está mentindo, se não é generoso, se não é rigoroso, se ele faz, como se diz aqui os gaúchos, “como quem vai às pitangas” (ir às pitangas significa, assim vale tudo, vale tudo qualquer coisa). Não! Aí não dá! Aí não dá. Mas se é feito com aplicação, com cuidado, e claro coerente, com justificativas e tal.

Eu quero só lembrar que a inversa não é verdadeira. O que eu estou dizendo não é para vocês professores e professoras. Os alunos podem achar que a inversa é verdadeira, “ah bom, então tá, não precisa fazer curso nenhum, porque se sai da periferia, se sai das margens, você sai da liberdade de pensar diferente. Então, preciso ficar participando de cursos ou treinando mesmo em grupos de pesquisa e laboratório e tal? É melhor eu estar fora disso porque aí eu entro e invento alguma coisa”. Negativo!

A inversa não é verdadeira!

Não é porque Mendel não era botânico. No caso, o fato de ele não ser botânico permitiu ele pensar diferentemente. Por quê? Porque a botânica do século dezenove articulava-se com toda a biologia de fluidos, de líquidos, de miasmas, de sangue, de seiva, de eflúvios. Há todo um vocabulário dessa biologia, misturam sangues, a seiva e dá uma média. Mendel começou a ver que não era assim, que ele misturava uma ervilha com a outra e não dava a média e que não tinha nada a ver com seiva, tinha a ver com polinização na flor, então ele era o quê? Rigoroso e ele fazia uma coisa que alguns cientistas não gostavam de escutar. Hoje eles escutam e concordam. Ele dava uma ajustadinha nos dados para dar aquele percentual de três amarela para uma verde, quando ele cruzava verde com amarela não dava um verde amarelado nem o amarelo esverdeado dava três quartos amarelo e um quarto dava verde, que ele chamou então de amarelo dominante, mas depois quando ele cruzava de novo se espalhava segundo uma binomial. Aí que tá? O cara era curioso, uma barbaridade, não tinha nem formação matemática. Ele era curioso, persistente e achou que a coisa não era seiva com seiva, e aí ele publicou e teve a infelicidade de viver na época dele, a única infelicidade dele. Publicou em alemão, publicou numa sociedade germânica, hoje República Tcheca, mas ele publicou numa sociedade alemã e ninguém viu, 1865-1901, ninguém viu, só três caras diferentes.

Quando a biologia já tinha mudado a sua episteme, e Pasteur foi importante para isso, de biologia fluida, líquida, miasmas, atmosfera, para corpuscular, para micróbios, para uma coisa pequenininha. Disseram: “mas tem um cara aí chamado Gregor Mendel, espere aí um pouquinho,” foram lá, 1901, concomitantemente na Alemanha, na França e na Inglaterra e descobriram o trabalho de Mendel, e aí disseram que ele era o pai da genética. Realmente, claro! Mas ele veio de fora, ele veio da periferia, foi preciso mudar a forma de pensar. Era o que eu queria dizer! É preciso mudar a forma de pensar para inventar, porque senão vai repetir o mesmo.

É importante repetir o mesmo?

É! Kuhn diz que é, que a ciência normal é super importante. Porque ela acumula, mas aí começam as anomalias. Eu acho que a paradigmatologia de Kuhn, eu sempre insisto, vale muito a pena a gente estudar, vale muito a pena mesmo, e eu tive dois semestres só estudando como aluno sobre esse livro, e aprendi muito, aprendi como se faz e como não se faz. Thomas Kuhn tem muito a ver, e as anomalias vão se acumulando, mas precisa vir o que ele chama de revolução. Não é uma evolução, dentro do paradigma, tem uma evolução ampliando, a gente esconde as anomalias, mas daí a pouquinho não dá mais para esconder. Aí explode e surge alguém que pensa numa alternativa, que vai acolher aquelas anomalias, não todas, mas vai recolher uma parte e vai adiante.

Então, podemos fazer isso com esses caras, com um Paulo Freire ou um desses outros mesmo com o Foucault, porque esses caras viveram numa época, Foucault morreu em 1984, isso aí quer dizer que ele não pensou nada disso que está acontecendo hoje, então temos que ressignificar e ressignificar... a desculpa eu me alongo demais.


Moisés Alves de Oliveira: Muito bom, eu quero ficar um pouquinho nessa última parte da sua fala. Nós terminamos de ler Thomas Kuhn no grupo, sentimos necessidade de recuperar algo da dimensão cultural das ciências, desde Fleck, Thomas Kuhn, Feyerabend, depois um pouco talvez de Bourdieu e seguir adiante aí com o Latour, com o Michel Serres para chegar nesses autores que estudamos mais fortemente dentro do grupo. Em um artigo seu, no livro organizado pela Marisa Vorraber Costa, que você intitula “Paradigmas, cuidado com eles” você defende a noção de um paradigma fraco. Você retoma agora a importância de compreendermos a questão revolucionária do Thomas Kuhn. fala um pouquinho mais para nós de como é que você entende essa perspectiva de olhar como um paradigma fraco, mas ainda assim insistindo na ideia de que é importante pensar o paradigma.


Alfredo Veiga-Neto: Sim! Um pensamento paradigmático mas non troppo [não muito], tudo aliás deve ser “mas non tropo, tudo na vida, eu acho. Na vida intelectual não tenho dúvida. Ora, eu escrevi esse texto -cuidado com eles - porque eu via muito “ah esse é o meu paradigma!” e aí sob essa frase, sobre esse muro - é o meu paradigma - a pessoa pode dizer qualquer coisa: esse é o meu Marx esse é o meu Latour, é como eu leio! Nesse artigo eu faço uma analogia acerca da interpretação e superinterpretação. Sabe onde é que fui aprender o que eu vou falar? Umberto Eco. O cineasta! O cineasta não, cineasta, filósofo e escritor. Tudo isso. Ele escreveu um livro sobre interpretação e superinterpretação. Não, essa é a minha interpretação! Daí eu escrevi o paradigma, cuidado com ele. Tem um exemplo matemático na teoria dos números, que eu uso. Uma boa parte do curso de matemática, do curso de graduação de matemática.

Aliás, durante o mestrado que eu precisava para estatística, meu mestrado é em cima de estatística. Eu precisava, então eu comecei a fazer, e aí eu gostei e semana passada, eu terminei uma disciplina de cálculo. Por internet.

Bem, a teoria dos números, tem uma coisa sobre infinito? E o que é o infinito? Muitas vezes as pessoas dizem que isso aqui admite infinitas interpretações, é verdade. Eu vou ler microfísica do poder de Michel Foucault. Uma página dessas aqui admite infinitas interpretações. Tem uma imagem do Stuart Hall - nosso Stuart Hall dos Estudos Culturais - que diz assim: “o quadro de chegadas e saídas de trens na estação central de Londres admite infinitas interpretações”. Não é só o que tá escrito ali, porque ele fala sim sobre interpretação, só que ele não conta o resto depois da vírgula, uma coisa que Umberto Eco contou e eu conto para vocês.

É verdade, aquele quadro pode ser lido e interpretado de infinitas maneiras. Até mesmo de uma maneira sentimental. Ali tem a chegada de um trem e nele vai chegar a minha namorada - é um exemplo que ele dá - e ali vai sair um trem, esse trem uma vez eu já andei nele e foi muito feliz que eu fui até a cidade de não sei onde. Esse é o exemplo que ele dá. É verdade, admite infinitas... pode ser uma leitura estética, pode ser uma leitura..., só que não admite todas porque infinito não é sinônimo de todos. Como assim? Se é infinito é todos. Não! E aí eu vou para os números. Na escala dos números vocês põem aqui assim entre um e o dois, quantos números reais existem? Existem quantos? Infinitos! Pois há um continuum. Isso é tranquilo? Entendido? Tem todos os números entre um e dois? Não! Quantos tem dentro? Infinitos. Quantos tem fora? Infinitos.

Então, quando o cara escreve alguma coisa, tem infinitos sentidos, mas não é qualquer sentido.

Eu não posso dizer para vocês, por exemplo: “Ah, mas é minha interpretação”, posso dizer infinitas coisas sobre o meu mouse? Infinitas coisas. Tá! Ou que ele é um produto da economia capitalista, que o meu aqui é chinês, então ele é uma cópia dos bons mouses. Posso escrever a história da China sobre esse mouse, mas eu não posso dizer que ele é um bolo inglês, que ele é um sanduíche. Ele é infinitas coisas, e nessas infinitas coisas agregadas a ele existem infinitas coisas. Pronto! Por isso eu vejo problemas com “ai! é a minha leitura!” então tu podes ter a tua leitura, mas tu não podes dizer por exemplo que Latour é um músico do século dezoito, dezessete, está vendo só? Existem infinitas coisas que Latour é, e infinitas coisas que ele não é, aí tem que estudar teoria dos infinitos. Essa ‘piração’ que não é fácil. Não é fácil.

Em última análise, paradigma tem a ver com isso. Bom, esse é o meu paradigma. É a minha leitura de Latour. Não! A sua leitura pode estar errada dentro do teu paradigma, por exemplo, o paradigma newtoniano, paradigma de Newton, não admite uma leitura do movimento, da flecha, como uma vontade da flecha, mas a leitura aristotélica sim, a flecha sai porque eu transmito a minha vontade. Estou louco para mandar uma flechada, aí eu libero a minha vontade; liberei a vontade, a flecha, que estava com a minha vontade acumulada, anda nesse percurso, aí chega lá, o estrago maior ela vai fazer quanto maior for a minha vontade.

Mas por que que ela não vai infinitamente? Porque tem uma vontade na terra que puxa ela para baixo. Na verdade, a física do movimento em Aristóteles é imbatível. Essa é a tese de Kuhn, dentro do paradigma aristotélico. Vimos que vai acontecer uma série de exceções, de anomalias e até dá uma virada com as teorias do movimento da Física Moderna, newtoniana no caso. Que depois vão sofrer uma ruptura - continua valendo -, mas uma ruptura para física não relativística. Dizer que está no paradigma, por mais que a pessoa esteja, não explica tudo, tem que ter cuidado. Essa é uma questão central.

Outra questão, que eu também indico cuidado é sobre a possibilidade ou não de uma relação entre paradigmas. O primeiro Kuhn, o Kuhn da estrutura, diz que os paradigmas são incomensuráveis, que se pensa em um paradigma não se pensa no outro, sim e não, depois daquela biografia que se chama Depois da Estrutura! Kuhn vai dizer “é, há uma incomensurabilidade, mas não é rigorosa”, porque se existisse mesmo uma incomensurabilidade entre a física newtoniana e a física einsteniana, se houvesse mesmo, o que um dizia o outro não entendia, e a gente entende, a gente se entende! A linguagem permite certa conexão. Ele chega a confessar isso, que ele tinha afrouxado, que ele estava pensando o paradigma no sentido muito duro, já nessa Depois da Estrutura. Eu uso essa imagem. Não é um paradigma duro, é um paradigma soft, porque a criação de limites rígidos é uma criação mítica. Não há entre uma espécie e outra, não há entre o homem e uma mulher, mas mesmo entre objetos mais simples, não há uma separação nítida e para todos sempre ali estabelecido. De modo que há permeabilidades. Quanto mais complexa a estrutura, maior a permeabilidade. O que nos permite ver elementos de Kant e Foucault, sem que Foucault seja um kantiano, o elemento - sem ele dizer explicitamente - do estruturalista no pensamento de Foucault, sem ele ser estruturalista. Então, as interpenetrações são muito mais sutis e possíveis, mas com rigor, com cuidado.

O conceito de poder, por exemplo, em Foucault, é um conceito muito diferente do poder em Bourdieu, que é um cara que trabalhou muito bem o poder. Não são a mesma coisa, mas ao fim e ao cabo eles produzem coisas que têm uma semelhança. Têm uma interpenetração. Contudo, só se chega a dominar isso quando se conhece bem Bourdieu e quando se conhece bem Foucault, porque poder em Bourdieu é visto como uma excrescência, como um certo tom de violência sobre os outros e o poder em Foucault é algo que produz, tem a sua positividade. A violência não é um poder exacerbado em Foucault nem o poder é uma violência branda, são de naturezas diferentes. Escrevi um texto sobre isso, debulho em detalhes para o caso da educação, professor de sala de aula exercendo o poder, a estrutura da escola, disposição das coisas, exercendo o poder e não violência. E tem uma passagenzinha lá no Vigiar e Punir que diz assim: “mas eu tenho que confessar que para que se exerça o poder, nós temos que de alguma forma submeter o outro a nossa escuta, a escutar o que eu digo que pode incluir alguma dose de violência” Senta aí e escuta o que eu vou falar, mais ou menos isso. Então é por isso que eu digo, paradigma não vão com tanta sede ao pote. Não pensem que está resolvido. “Não, mas isso é a minha leitura”. “Não! Eu estou em outro paradigma”.

Isso às vezes mata o interlocutor no sentido kuhniano. No primeiro Kuhn eu diria, que é o Kuhn da estrutura das revoluções, ele é duro, por isso diz que as ciências humanas não são paradigmáticas, porque ele está entendendo paradigma como um grande conjunto na física... na química estuda o caso do oxigênio. Então ali é para valer, o grande paradigma é para valer, claro. Onde eu vejo uma coisa, qualquer coisa, aquela coisa que Feyerabend trabalha? Onde eu vejo orelha de coelho, o outro vê bico de pato, Gestalt, e isso é verdade, mas eu posso conviver com os dois e administrar os dois, eu posso querer ver só orelha de coelho ou só ver bico de pato, eu posso administrar e isso quem tem que fazer é o intelectual, que vai jogando um pouco com essas coisas, tá? Eu vejo nos pós-estruturalistas, essa saída. As pessoas que começam a trabalhar nessas perspectivas pós-estruturalistas tendem a pensar que não há um fundamento, que não se deve aceitar botar o livro debaixo do braço e dizer fulano. Existe muita flexibilidade, eu vejo muito essa história “não, mas a minha leitura” ó aí tu matas, é a minha leitura, é assim que eu vejo! e então, quer saber uma coisa, você está vendo errado, tem erro!

Nós, que estamos na área da educação, temos que ser generosos e explicar que nós temos alguns princípios e que esses princípios têm que ser respeitados. A ciência, o laboratório, por exemplo, mas por que que eu tenho que botar avental? Por que que eu tenho que botar óculos de proteção em alguns experimentos ou algumas tarefas? Ou por que que eu tenho que lavar as mãos? Por que que eu tenho que usar máscara? Eu não quero! Então, tu não entras no laboratório pronto, é fácil!

Eu trabalhei muitos anos no ensino de ciências - é mostrar que ensinar ciências é educação científica, mais do que ensinar coisas da ciência é a educação para a ciência, de compreender o que é o conhecimento científico, compreender a falibilidade, compreender que a ciência está sempre pronta para se reformular, mas quer se reformular com fundamento. Não qualquer um chegar e meter a colher e dizer qualquer coisa, como está acontecendo hoje no Brasil, não existe uma crise científica que as pessoas não acreditam, não! Acreditam [as pessoas no Brasil], mas se dão o direito de desacreditar, de dizer outra coisa, de esconder outras coisas. Então, educação científica é muito mais do que ensinar ciências, é ensinar o funcionamento das coisas ou a leitura que a ciência faz da vida, da mecânica, da química, das substâncias dos fenômenos, tá? Isso é ensino de ciências. A educação científica é mais abrangente, envolve uma postura no laboratório, uma postura na biblioteca, uma postura perante os colegas. É por aí que envolve a ética.


Moisés Alves de Oliveira: Foucault e Educação. Esse é um livro famoso está no top das citações do Alfredo. Nele você vai falar, ser bastante didático - é uma referência obrigatória para quem quer entender Foucault. Por esse livro, somos introduzidos no pensamento de Michel Foucault, entendendo muita coisa das fases do filósofo. Logo no início, você cita Richard Rorty, olha o Foucault funciona melhor dentro da perspectiva das filosofias edificantes. O Foucault não quer ser sistemático. E a gente gosta muito - nos Estudos Culturais - de ler isso porque flerta, ou pelo menos aproxima-se das nossas perspectivas; ao menos aqui, no GECCE, de uma aproximação também com o pós-estruturalismo. Área que você estudou muito, escreveu muito a respeito e ajudou muito o campo ao longo desse tempo todo. Pois bem, como a perspectiva edificante nos estimula a esse pensar de outra maneira, a pensar nas fronteiras, a pensar Queer por exemplo? Se vamos nessa direção, muitos dos movimentos de esquerda ficaram muito entusiasmados com essa perspectiva por quê? Por que abre um espaço para o discurso do múltiplo? Para as diferenças e para as mediações, aí vêm os movimentos neoliberalistas e usam essas mesmas forças discursivas e nos paralisam. Essa contradição que sempre foi uma bandeira de luta dos movimentos edificantes, de repente assim muito rapidamente troca de mão e deixa a esquerda relativamente paralisada. Em algum sentido, achávamos que a democracia estava tão bem instituída que a gente podia brincar com ela, dizer não à democracia, chamá-la de mito, de metanarrativa, agora nós estamos em vias de tentar defender a metanarrativa, exatamente desses neoliberais que sempre acharam da democracia um discurso de poder. O que opera ali é um fascismo radical como você escreveu muito bem em: “para uma vida não fascista”. Minha provocação para você é: “de fato a democracia é uma metanarrativa que precisa ser superada? É um sonho que precisa ser superado?

Alfredo Veiga-Neto: Primeiro te agradecer me lendo. A gente escreve para ser lido. Ficou contente e vamos combinar que existe em tudo isso uma parcela não pequena de vaidade... é assim que funciona a academia, é assim que funciona a vida, Moisés, nós precisamos inventar motivos para nos levantar de manhã para sair da cama. Melhor do que os motivos que nos impõem os outros é nós inventarmos motivos por nós mesmos, que é o melhor. É uma força, é algo que me conduz, que é dirigir, que me dirige, que me bota para frente. Eu tenho que ter. Então, o meu drive é esse? Falar com os outros, escrever, ser escutado e gostar disso. Eu te agradeço, mas me deixa tentar responder à questão do fascismo, neoliberalismo, democracia que está em vias de ser superada.

Uma coisa interessante no capitalismo. Capitalismo é aproveitador. Ele aproveita recursos naturais, ele aproveita o tempo, isso o velho Marx quase duzentos anos atrás já tinha descoberto, ele é aproveitador, ele captura, ele sequestra o tempo, ele sequestra a invenção alheia, e ele gira cada vez mais rápido para acumular mais, acumular mais o quê? O capital. E o liberalismo, que não é uma ideologia, mas que é um modo de vida criado a partir do capitalismo. O neoliberalismo é vampiresco, ele rouba. Ele rouba inclusive ideias, ele inventa competição para tu ficares escravo dos outros, competindo com os outros e contigo mesmo, tu competes contigo mesmo. Portanto, ele cria aquilo que os caras chamam uma aceleração do tempo, cria em nós o desejo de acelerarmos um tempo social, um tempo humano, mas não podemos acelerar o tempo histórico, o que acontece? Nós estamos sempre em dívida. Então, vamos ler lá o Lazarato em português [refere-se à tradução], a fábrica do homem. Não. A fabricação do homem endividado, tá? Já deram pau nele porque ele botou do homem endividado. Não, da mulher também. Tá todo mundo endividado, tá? Por que essa correção? De gênero e tal. Tem que falar!?

Então o neoliberalismo suga inclusive as ideias. Ele imprime em nós um modo de vida que, para usar talvez Deleuze, fantasmagórico? Nós temos fantasmas e vivemos cercados desses fantasmas. Então, não há dúvida, capturar ideias alheias não é uma coisa rara, mas no caso do neoliberalismo se faz uma mistura, mas com tendências a conservar. Porque não pode ser inovador. O neoliberalismo não pode ser inovador. Porque se ele for inovador ele acaba se destruindo. Como todos os ismos: cristianismo, marxismo, luteranismo, todos os ismos. Que que é o ismo? O ismo é a fundação de um princípio básico, um grande fundamento. Então, os ismos levados a sério são isso, não admitem outra, não admitem outra. E que as igrejas, na sua imensa maioria, são assim, porque não há dúvida, porque se botar em dúvida a base, fundamento, aí se desmancha, aí perde a graça, aí se desmancha. Que é o coronelismo? O que é o integralismo? Que é o fascismo? Que que é o stalinismo? Que é o marxismo? Todos eles, de um lado ou de outro, são o reino da intolerância. Eu não tolero o outro. Posso até fazer silêncio e tal, mas me afasto. Então, o humanismo, criticado por Foucault, por sinal, principalmente em As palavras e as coisas. Humanismo é isso, é ver o homem como origem de todas as coisas, de todas as inteligências. então ele bota em questão, e ele vai dizer o quê? O homem é um produto e não um produtor, essa é a pegada de Foucault entre outras coisas: o sujeito é um produto, é produzido, e o grande objetivo de Foucault a vida toda foi estudar as diferentes formas pelas quais os indivíduos se transformam em sujeitos. São feitos sujeitos. Sujeito não faz. Sujeito é feito. E depois passa a fazer coisas. mas para fazer coisas ele tem que ser subjetivado, o que inclui assujeitamento, incluída até a obediência.

Agora isso não quer dizer que não tenha princípios? Não é um vale tudo como alguns leem Feyerabend, anything goes. Mais metodológico, no meu caso aqui mais epistemológico, episódico, mas as minhas ações ficam dentro de alguns parâmetros dos quais eu não me afasto, mas aí então quer dizer que tu tens teus fundamentos, tenho meus fundamentos, mas não são fundamentos de todos para todos, para todo o sempre, e nem meus para todo o sempre. A imagem da metamorfose ambulante é muito boa, que é uma expressão do Paulo Coelho.


Moisés Alves de Oliveira: Alfredo, que manhã fantástica! A gente já tem que deixar você seguir a vida? Sim, você foi sequestrado essa manhã, não há dúvidas. Mas, Alfredo, o que você diz para essa plateia aí? O que você tem de mensagem na perspectiva dos Estudos Culturais - que você ajudou a fortalecer no Brasil - para essa plateia que te lê? De jovens pesquisadores. Temos aqui muitos mestrandos ativistas políticos, doutorandos, o que que você diz para esse pessoal? Como é que a gente segue e mantém em funcionamento essa perspectiva de olhar?


Alfredo Veiga-Neto: Tem uma expressão que é de Nietzsche, que é vontade de saber e eu começo por aí. Vontade de saber, que envolve algo que a gente pode chamar de tesão pelo conhecimento. Não é pela sabedoria. Sabedoria vem depois. Vem como resultado, digamos assim, quase que automático, mas pelo conhecer, pelo perguntar, pela escuta saber escutar, saber desdizer-se. Eu tenho isso, são algumas qualidades que eu procuro seguir, mas nem sempre consigo, ter um bom humor em relação aos outros? Principalmente para aqueles que nos alimentam com coisas boas, com pensamentos que dão samba, que me levam a pensar mais e de maneiras mais complexas, mais difíceis mesmo. Isso não é conselho, mas uma dica, uma grande dica que eu dou é essa: saber escutar, saber escutar seu orientador e sua orientadora. Saber escutar e saber também se antepor aquilo com que ele não concorda, sabendo também justificar, sabendo argumentar, tem que ter café no bule. E eu diria isso no caso específico dos Estudos Culturais, entendendo a cultura essa misturenga imensa de crenças, hábitos, maneira de ver as coisas, maneira de viver, rituais, gosto, tudo isso, uma cultura como esse conjunto, inclusive de produções. A relação disso com a educação é absolutamente radical, profunda. É pela educação que nós, que estamos numa cultura e que prezamos por essa cultura, trazemos os outros para essa cultura. Educar é isso. Educar não é ser livre - pode ser, é bom que seja –, não é ter espírito crítico, é bom, é preciso, mas não é. Verbo aí tem uma força muito grande. Educação é ação de educar. O que é educar? Educar é trazer o outro para cá, os que não estavam para cá, aqueles que nasceram para cá, os estrangeiros, para cá, para cá onde? Para o interior de uma cultura. Eu não tenho dúvida que os estudos culturais nos dão os instrumentos melhores para conhecer. Claro que a antropologia, os métodos etnográficos, a etnografia, a etnologia são importantes, claro, claro. Mas os Estudos Culturais podem jogar com tudo isso.

[1] Um dos participantes ouvintes durante a entrevista utilizava esta sentença como identificação no lugar de seu nome. [2] Uma versão encontra-se disponível em: <https://pt.scribd.com/document/316372675/VEIGA-NETO-Michel-Foucault-e-Os-Estudos-Culturais>. Acesso em: 23 de novembro de 2021. [3] O texto encontra-se disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/FtpkV5RY3Q64nvBdvxbSXwg/?lang=pt. Acesso em: 23 de novembro de 2021.

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