Por Alexandre Luiz Polizel
Alexandre (GECCE) – Fabiana, me sinto honrado em poder contar com a sua presença, com sua história, com sua narrativa (e com sua amizade). Por te conhecer e saber de sua trajetória formativa, saber de sua formação hibrida e da caminhada pelos vários campos da Química e dos seus ensinos, gostaria que nos contasse um pouco sobre como foi sua entrada, encontro e caminhar no campo dos Estudos Culturais das Ciências e das Educações?
Fabiana Gomes: Minha entrada foi fulminante! Era tudo ou nada!
Mas antes de iniciar nossa conversa sobre meu encontro com os Estudos Culturais, quero agradecer a oportunidade de estar contigo em mais esse momento de vida. Algo que me aquece a alma e me enriquece como pessoa.
Participei em 2015, juntamente com mais dois colegas do campus Uruaçu (do IFG), do processo seletivo para doutorado chamado DINTER, doutorado interinstitucional firmado entre a minha Instituição de trabalho e a Universidade Estadual de Londrina. Nessa parceria, a UEL entrou com a formação e a orientação dos professores e o IFG, com estudantes dispostos a aprender e a capacitar-se melhor para a atuação docente.
Após as etapas avaliativas, fomos para a escolha dos professores orientadores. É aí que minha vida muda. Como participei muitos anos do PIBID, pude coletar muitas histórias e muitos resultados de pesquisas que desenvolvi com meus bolsistas e isso foi apresentado como proposta de projeto para o doutorado. No entanto, penso que o projeto não foi agradável ou interessante a ponto de ser escolhido, pois logo de início foi descartado como possibilidade. Pois bem, o projeto não agradou, mas o fato de eu ser a única com formação na área de Química, diante das formações dos meus colegas do DINTER, foi o principal critério pelo qual fui escolhida pelo professor Moisés. Essa foi minha percepção.
Na primeira conversa com o Moisés sobre a área dos Estudos Culturais, eu só conseguia pensar: “andei dormindo esses anos todos, só pode! nunca ouvi falar dessa área?!” E isso, de certa forma, me deixou ainda mais motivada, iniciar do zero essa nova fase da minha vida era como (re)aprender a escrever.
E cada vez que lia mais sobre as temáticas que atravessam os Estudos Culturais, menos eu sabia. E aparentemente o caminho era esse mesmo, segundo conselhos e acalentos dos colegas e amigos do GECCE. Nos encontros presenciais com o grupo, me situava sempre como espectadora, como aprendiz. Em poucos momentos, me senti segura para discutir ou apresentar minhas considerações sobre os temas ali em circulação.
O primeiro ano de doutorado foi de aprendizagem, mas também foi de tortura. Não tinha ideia do que pesquisar, apesar de simpatizar com as pedagogias culturais e os estudos das mídias. Eu sabia a direção, mas ainda não vislumbrava o caminho.
Foi quando, em uma conversa com meus estudantes do IF, eles me apontaram o Manual do Mundo como lugar de ensino de Química. Ao comentar com a Cristiane, minha veterana no GECCE, minha dúvida se torna uma certeza. Fui estudar como a Química é usada pelo canal de entretenimento Manual do Mundo para agenciar seus seguidores. O Moisés se empolgou e me deu seu aval. Dali em diante foi uma imersão diária nos estudos de laboratório e de Bruno Latour, um autor que nunca ouvira falar e que agora faz parte da minha família e da minha história.
Alexandre (GECCE) – Fabiana, vejo que suas reflexões acerca dos Estudos Culturais das Ciências e das Educações (ECCE) ancoraram-se em encontros e desencontros no Grupo de Estudos Culturais das Ciências e das Educações (GECCE) na Universidade Estadual de Londrina. Como você vê os efeitos da participação no GECCE, enquanto grupo institucionalizado e disciplinar, na sua trajetória nos ECCEs?
Fabiana Gomes: O GECCE para mim tornou-se ponto de passagem. As trocas e aprendizagens circulantes neste espaço me fizeram doutora, com certeza. Cada ator desse grupo me agenciou de alguma forma. Seja pelas falas durante os encontros para discussão, seja tomando café e se mostrando interessado no andamento da minha pesquisa, seja sugerindo referenciais... mas, sobretudo, fortalecendo laços de amizade e cumplicidade. As relações que fiz no grupo estão pulsando até hoje.
Alexandre (GECCE) – Fabiana, como você percebe, a partir de sua história de vida, que o campo dos Estudos Culturais das Ciências e das Educações pode contribuir com os espaços educacionais (formais e não formais)?
Fabiana Gomes: Para mim, o que mais impactou quando retornei à sala de aula, foi a relação com a Química. Deixei de pensar numa Química com Q maiúsculo e ciência construída a partir de verdades absolutas. E era assim que eu reproduzia aos meus alunos, nas minhas disciplinas escolares. Ao estudar um pouco de Latour e seus estudos de laboratório, a construção da ciência passou a ser concebida por mim como uma atividade permeada de interesses políticos, culturais e sociais, e isso refletiu no espaço da sala de aula. Estamos colocando mais os fatos em discussão, ao invés de tomá-los como caixas-pretas. Ao pesquisar como a construção do conhecimento ocorre por meio de uma mídia, o olhar mais atento aos espaços não formais de ensino me fez perceber que a escola não é santuário do saber, mas um dos espaços de formação do sujeito, legitimado sim, mas não o único. Essa percepção me leva a criar situações de ensino que busquem aliar os saberes produzidos nos ambientes formais com os não formais de maneira simétrica.
Alexandre (GECCE) – Fabiana, vejo que seus ensaios e experimentações a levaram ao desenvolvimento da Tese: “Maldita química! mal consigo prever seus movimentos": as associações que movimentam a química no canal do YouTube Manual do Mundo”. Do que se trata este trabalho e como ele nos ajuda a pensar os ensinos a partir dos Estudos Culturais das Ciências e das Educações? Poderia nos falar um pouco sobre ele e suas contribuições?
Fabiana Gomes: A química que circula no (e pelo) Manual do Mundo é uma química experimental. Isso visto, porque o protagonista do canal, por não ter formação acadêmica em química, vê como fator de credibilidade falar dessa ciência em um local legitimado para isso, o laboratório. Ao vermos uma pessoa caracterizada com jaleco branco debruçada sobre uma bancada de laboratório manipulando suas vidrarias, de forma alguma iremos desconfiar de seu discurso científico. Esse cenário é uma forma de arregimentar, de convencer jovens e crianças a acreditar que o que se fala no canal é a mais pura verdade. Além deste, os experimentos demonstrados numa prática do “do it yourself” estimula um sentimento de produtor da ciência, posição que estava ao alcance somente daqueles que se diziam cientistas. Contudo, essa química manipulada em casa, no ambiente da cozinha, onde todos e todas possam fazer, é uma química fácil, descomplicada, mas que tem que ser também deslumbrante, chamar a atenção. É aí que entra outra estratégia, o chamar a atenção. Nós tentamos chamar ela de pedagogia do contraste porque vimos que as cores, as explosões, a espetacularização da ciência, arregimenta muitos seguidores. Mas o que fazer quando se esgotam as possibilidades? De início ele se re(inventa) criando formas diferentes de mostrar o mesmo fenômeno e por fim, a abandona e inicia uma outra rede. Foi o que aconteceu com os experimentos de química no canal. O protagonista viu as possibilidades de experimentos se esgotarem, pois os que viriam não seriam permitidos ou viáveis de serem reproduzidos, o que fez ele abandonar a química e se deslocar a outros projetos.
Ao fazer uma leitura entre o Manual e o ensino, vemos muitos pontos em comum. Um deles é o uso que os professores fazem do laboratório escolar quando levam seus estudantes a realizarem aulas experimentais. É para arregimentar a atenção para o conteúdo, para o professor, para a disciplina. A outra está na escolha do que ensinar no laboratório, pensando em primeiro lugar em algo que surpreenda, que seja legal, que seja impactante. Veja bem, não estou aqui defendendo uma química ou outra, ou dizendo que essa forma de lidar com as aulas experimentais seja errada, pois não fazemos esse tipo de julgamento nos Estudos Culturais. O que tento dizer é que essa “química show” produz efeitos e que estes efeitos precisam ser constantemente (re)avaliados pelos professores.
Alexandre (GECCE) – Vejo que sua base de estudos e inspirações se voltaram ao pensar com o antropólogo, filósofo e sociólogo Bruno Latour. Quais contribuições desse intelectual você considerou e considera potentes para pensarmos os Estudos Culturais das Ciências e das Educações?
Fabiana Gomes: De pronto me vem à mente a Teoria Ator-Rede. Pensar as relações envolvidas na construção da ciência como uma rede de atores humanos e não humanos interligados me acende um brilho no olhar. Tento me aventurar um pouco nestes conceitos. Latour nos estimula a seguir as associações que se constituem ao nosso redor e que são capazes de se estender mundo afora, formando uma rede sem fim. Pensar que os elementos humanos e não humanos estão em uma ligação simétrica de forças ao constituírem a rede é potente para os Estudos Culturais.
Alexandre (GECCE) – Evidenciamos que seus escritos e reflexões têm pensado os laboratórios e suas dinâmicas e derivas no campo dos ensinos de ciências, principalmente os estudos sobre os laboratórios virtuais. Vejo que há, inclusive, projetos de pesquisas que tem coordenado sobre o tema, como “A virtualidade da educação química em Bruno Latour” e “Etnografia de um laboratório virtual de ensino de química”. O que tem estudado nestes projetos e que análises tem trazido para pensar as Educações em Ciências a partir dos Estudos Culturais das Ciências e das Educações?
Fabiana Gomes: No projeto da virtualidade da educação química em Bruno Latour, tentamos mapear o movimento de translação que a química, nos espaços midiáticos, faz dentro de um sistema de convencimento (endereçamento) usado para atrair os jovens que participam de um sistema educacional sem atrativos. Esse projeto foi planejado para três anos e já estudamos a química em determinados canais de videoaulas, o que foi produtivo para um trabalho de conclusão de curso; as controvérsias geradas por questões sociocientíficas em canais de divulgação científica do YouTube, o que foi foco de um Trabalho de Iniciação Científica; e agora a leitura das representações da mulher no canal Manual do Mundo, apresentado no X CINABEH.
No projeto da etnografia de um laboratório virtual, pretendemos acompanhar a construção da ciência nos estágios iniciais de formação do laboratório virtual que implementamos no nosso campus. O principal objetivo do projeto é investigar os modos de tradução científica que constituem a rede sociotécnica durante a construção de um laboratório virtual de química e os experimentos ali desenvolvidos. Dentro dessa rede, ainda pretendemos compreender como o sistema cultural que se estabelece neste período histórico que vivenciamos produz modos de ensinar através dos espaços dos laboratórios virtuais, ou seja, como é possível pensar em um laboratório de ciências para além do laboratório físico. Esse projeto foi vinculado ao projeto de ensino de implementação do Lavenq e que fora fomentado pelo próprio IFG.
Alexandre (GECCE) – Fabiana, seus trabalhos têm nos mostrado que os laboratórios virtuais têm trazido à tona aspectos relevantes para pensarmos as múltiplas pedagogias das químicas. Em seu trabalho Estratégias de arregimentação de interesses produzidas em um laboratório (virtual) de química, publicado na Revista Valore, você nos fala de uma Pedagogia do Contraste. O que seria essa pedagogia e como as culturas nos falam sobre elas? O que elas nos dizem para pensarmos os Ensinos de Ciências e das Químicas?
Fabiana Gomes: A pedagogia do contraste é uma forma de pedagogizar, através do contraste, que alguns fenômenos químicos são capazes de produzir, como por exemplo, mudança de cor, formação de precipitado, reações fluorescentes, explosões, enfim, todas aquelas que nos prendem a atenção ao fenômeno. Nós a intitulamos assim porque vemos como uma pedagogia que ofusca outras formas de ver a química, uma vez que o contraste irá diferenciar e destacar uma coisa de outra. A ela está associada uma outra pedagogia, a pedagogia do olhar. O contraste nos fixa o olhar naquilo que sobressai, e de forma rápida. É uma forma, mas não a única. Há uma química que não muda de cor, que não explode, que não forma precipitado e que, mesmo assim, também pode ser usada como estratégia de arregimentação, mas sem o elemento contrastante.
A questão da rapidez é uma questão séria para as gerações do mundo contemporâneo. Não há tempo a perder, o que vale é o imediatismo dos processos. Um vídeo, um áudio, uma aula não têm sentido se forem tomar muito tempo do espectador; ele se dispersa, perde o interesse. O contraste é o efeito que direciona o olhar e não causa a sensação de tempo perdido.
Alexandre (GECCE) – Ainda sobre estas reflexões acerca dos laboratórios virtuais, vejo que, em seu escrito A Química do movimento Do It Yourself! Uma estratégia de arregimentação de seguidores, publicado na Revista Koan, você nos fala de uma Pedagogia dos Do It Yourself. O que seria essa pedagogia e como as culturas nos falam sobre elas? O que elas nos dizem para pensarmos os Ensinos de Ciências e das Químicas?
Fabiana Gomes: O Manual do Mundo consegue estabelecer alianças com os atores que arrastam uma química com formato de “faça você mesmo” ao se associarem aos utensílios domésticos e cotidianos deles. Nessa pedagogia, em que a educação é voltada a uma suposta noção de autonomia e liberdade, o movimento Do it Yourself, como é amplamente conhecido na língua inglesa, é evocado para criar a sensação e o estímulo de que qualquer pessoa, criança ou não, pode realizar suas próprias experiências de química. O deslocamento dos ingredientes de uma cozinha, dos alimentos do dia a dia e a facilidade de manipulá-los e encontrá-los agenciam, mais uma vez, a prática do “faça você mesmo” ao mesmo tempo em que renova certos discursos pedagógicos que defendem o uso de materiais reciclados e caseiros nas aulas de ciências.
Alexandre (GECCE) – Fabiana, para finalizarmos, poderia nos deixar algumas reflexões que você acredita que são relevantes para pensarmos os Estudos Culturais das Ciências e das Educações na contemporaneidade?
Fabiana Gomes: Bruno Latour, em Cogitamus (2016), diz que os meios de comunicação digital modificarão profundamente a pedagogia, no sentido de que substituirão o sistema de tutoriais e a relação direta entre docentes e estudantes. Pensamos que as formas de ensinar e de aprender também serão influenciadas. Esses últimos meses nos mostraram que esse processo já teve início. Para um dos criadores do canal Manual do Mundo, as redes sociais irão estimular “[...] a formação de novos cientistas, por despertar curiosidades e interesses diversos nos jovens”, pois ele acredita que o “[...] YouTube já está reformulando o jeito de ensinar e aprender”. Mas o que a internet pode oferecer, que talvez a escola não ofereça? Muitas coisas. É no espaço fértil da internet que o sujeito se vê capacitado a “parar, explicar, compartilhar, comentar”, trazendo uma configuração outra no modo de ensinar e aprender. Para a antropóloga Paula Sibilia, em sua obra Show do Eu (2016), o ciberespaço dominado pelos jovens é considerado espaço de resistência àqueles que os criaram. Nele os jovens se sentem libertos à criação e à inovação, pontos fortes da rede – visibilidade e conexão sem pausa.
Nós, como atores da educação, temos o compromisso de compreender esse espaço da internet e como ele está ressignificando as formas de ensinar e aprender. A maneira como os conteúdos escolares transitam nos programas de educação – materializados em leis e diretrizes –, nos livros didáticos e nos discursos pedagógicos mantém uma imagem do ensino de química como sendo de domínio exclusivo da escola. Dessa forma, o Manual tenta romper a ideia de que é somente na escola que encontraremos pessoas que educam, criando, assim, seu próprio espaço de produzir signficados e colocando certos conteúdos em movimento, mas de outra maneira.
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