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Foto do escritorSusan Caroline Camargo

Nomadland: uma cultura de (sobre)vivência em meio ao fracasso do capitalismo

Por Susan Caroline Camargo

 

No último dia 26 de abril, a cineasta chinesa Chloé Zhao fez história ao se tornar a segunda mulher (e a primeira asiática) a ganhar o Oscar de melhor direção em 93 edições do evento de mesmo nome do prêmio organizado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. A obra idealizada, roteirizada e dirigida por Zhao, Nomadland, adapta para as telas o livro de não ficção da jornalista norte-americana Jessica Bruder, de título Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century, lançado no país de origem da autora em 2017.

Ainda inédito no Brasil, mas já com previsão de chegada nas terras tupiniquins pela editora Rocco, com lançamento programado para o segundo semestre deste ano, o livro, que aqui no Brasil ganhará o título de Nomadland: Sobrevivendo aos Estados Unidos no século XXI, foi escrito a partir de um estudo da vida dos que a autora chama de “nômades contemporâneos”. Esses nômades, na verdade e em grande parte, são pessoas que, vítimas da Grande Recessão, a crise decorrente do colapso do mercado imobiliário que afetou os Estados Unidos nos anos de 2007-2008, perderam qualquer segurança financeira e passaram a morar em seus veículos recreativos – Recreational Vehicles, ou simplesmente RVs – que nada mais são do que trailers ou vans adaptadas com espaços de convivência básica, como uma pequena cozinha, e um colchão para dormir.

Com a adaptação do livro em um longa-metragem, há uma possibilidade de expansão do público que terá contato com a narrativa construída, e, com isso, surge também a oportunidade de análises, como a que vou propor aqui. Antes de prosseguir contextualizando o livro/filme, já adianto que escrevo este texto na intenção de propor possibilidades de olhares para esse longa quase documental que é Nomadland – já que conta com a maior parte de seu enredo baseado em eventos reais – mas que faço isso a partir de meu próprio modo de olhar, que, por sua vez, é resultado de tudo o que trago em minha bagagem. Quanto à organização deste texto, preciso deixar o aviso de possíveis spoilers quanto a narrativa do filme, já que, embora eu não o descreva detalhadamente, nem trate do enredo de maneira cronológica, será necessário descrever alguns pontos para que meus argumentos se façam compreensíveis.

Voltando então para a adaptação cinematográfica de Zhao, o filme ganhador de três Oscars, incluindo o de melhor filme, e que faturou também prêmios nos principais festivais de cinema, a exemplo do Globo de Ouro e do Festival de Veneza, foi filmado em 2018, antes da pandemia de coronavírus que ora enfrentamos, e, para adaptar a narrativa escrita por Bruder, a diretora se limitou a incluir poucos atores profissionais e personagens ficcionais, e esquematizou um roteiro no qual os próprios nômades citados no livro dessem conta de acompanhar para interpretarem a si mesmos no filme, contando suas próprias histórias (ou alguma versão similar escrita por Zhao).

O filme inicia com um texto que informa a respeito da US Gypsum, uma fábrica de materiais para construção que, devido à queda da demanda por gesso, precisou fechar suas portas em janeiro de 2011, após 88 anos de funcionamento na cidade-companhia de Empire, no estado de Nevada. Cerca de 2 meses após o fechamento da fábrica, o CEP de Empire foi desativado, transformando o lugar em uma cidade fantasma. A fábrica de fato existiu, e é a partir dessa ocorrência real que foi criada a personagem fictícia Fern, que funciona como o ponto de imersão do espectador na história que será contada. Fern é uma mulher na casa dos 60 anos, que, após o fechamento da US Gypsum, onde trabalhou a vida toda com seu esposo recém-falecido, se vê obrigada a aderir a esse ‘estilo de vida’ nômade, alugando um galpão para guardar algumas coisas de sua casa, e comprando uma van para se deslocar em busca de ‘oportunidades’ no país.

As aspas que utilizo para enfatizar a palavra oportunidades são porque na realidade, por trás dessa palavra fantasiosa, escondem-se diversas formas de subempregos, serviços temporários e sem nenhum tipo de garantia. Em uma das primeiras cenas do filme, vemos Fern deixando sua van em um estacionamento onde se encontram vários outros veículos recreativos, e indo ao primeiro local onde vai trabalhar: um galpão da Amazon. Lá mesmo, ela conhece em meio ao grupo de trabalhadores temporários, Linda May, uma nômade com quem faz amizade, e que lhe aconselha a comparecer em um encontro anual organizado por Bob Wells, uma espécie de guru e precursor dos nômades modernos. O encontro, que é tão real quanto seu organizador, acontece anualmente em terras públicas no deserto do Arizona, onde antes centenas, mas hoje milhares de pessoas se encontram para assistir Wells palestrar acerca das vantagens de viver em uma ‘casa sobre rodas’, além de aprenderem a respeito de reparos, manutenção e adaptações para melhorar o conforto em suas casas, e também como se comportar em determinadas situações – a exemplo de estacionar furtivamente em um local não permitido.

Nesse ponto do longa, já é possível identificar certos marcadores nas pessoas que aderiram a esse estilo de vida: 1) são pessoas mais velhas, em geral com mais de 50 anos, e que sentiram a crise financeira de uma forma muito impactante em suas vidas, a ponto de perderem suas casas e bens de maior valor; 2) justamente pela idade que possuem, não conseguem encontrar empregos fixos que lhe permitissem recomeçar, e adquirir um imóvel, e por fim, mas não menos importante, 3) encontraram na vida nômade uma forma de seguir sobrevivendo, superando muitas vezes a depressão e o desejo suicida que a perda de segurança financeira lhes trouxe.

Quanto ao último marcador, penso ser ele o mais perigoso de todos com relação à análise da situação que levou essas pessoas a viverem dessa forma nômade. Isso porque, apesar da lição de superação que aparenta haver aí, não há nada de romantizável nas condições que subjazem a essa ‘escolha’ de uma vida sobre rodas. Primeiro porque não houve escolha alguma: todos os que aderiram à vida sobre rodas, tornaram-se nômades, porque, na impossibilidade de manterem-se estáveis em suas vidas financeiras para pagarem por um imóvel, a única coisa que sobrou foi juntar o restante das economias e comprar um carro para rodar o país em busca de algo que lhes permitisse ao menos comer.

O filme, apesar de toda licença poética, cumpre bem seu papel em não romantizar esse fato e reduzi-lo a uma lição de moral. Pelo contrário, mesmo sem tomar uma posição política de maneira mais incisiva, elegendo a política do governo X ou Y como culpada por essa forma de etarismo que a lógica capitalista pratica de maneira tão cruel, ele exibe o modus operandi das grandes empresas, tais como a Amazon, redes famosas de lanchonetes, ou parques famosos na terra do Tio Sam que são citados no filme: explorando mão de obra barata. Tampouco o filme coloca os nômades numa posição de coitadismo. Essas pessoas, embora em sua maioria idosas, ainda têm orgulho próprio, e por mais que não estejam totalmente desamparadas, se recusam a viver de favores na casa de seus familiares e/ou conhecidos, e também reconhecem que o valor da aposentadoria não pode lhes prover o suficiente para manter uma casa, plano de saúde e demais necessidades, por isso continuam se movendo apesar das condições difíceis.

Em dado momento do filme, o enredo até propõe alguns momentos que expressam como os nômades se sentem em relação a suas moradias. Um desses momentos ocorre quando Fern está em seu horário de almoço enquanto trabalha no galpão da Amazon, e uma de suas colegas lhe mostra as tatuagens que possui, dizendo que tatuou em seu corpo vários trechos de músicas da banda britânica de rock The Smiths, e que a que mais gosta diz “Lar é só uma palavra, ou algo que você carrega junto de si?”. Fern, que ao longo do filme é mostrada como uma mulher sem muitas expressões, como se já tivesse anestesiada por conta de sua trajetória de vida, fica bastante emocionada com o que ouve de sua colega. E isso faz mais sentido quando mais adiante no filme, Fern, ao encontrar uma ex-aluna do tempo em que era professora temporária numa escola de Empire, é indagada se ainda é sem-teto, já que a mãe da menina e uma conhecida de Fern costuma dizer isso. Quando é confrontada dessa forma, a personagem prontamente responde que não é sem-teto, é apenas sem-casa, e que isso é bastante diferente.

Isso não quer dizer que, apesar do orgulho, a personagem por vezes não sinta falta de uma casa. Isso porque nos momentos finais do filme, ela até se sente culpada em dormir em uma cama quente, embaixo de um teto, quando passa para visitar um amigo ‘ex-nômade’, que agora mora com o filho e a nora, e é convidada a ficar por tempo indeterminado. Ela flerta muito com isso, mas mantendo seu orgulho, corre para sua van e se vai para longe da ‘tentação’, já que esses convites a ofendem de certa maneira.

Um outro elemento bastante interessante utilizado pelo filme é a ausência de localizar o espectador quanto ao tempo e ao espaço onde se passam os acontecimentos da vida de Fern. Apesar de propor indícios, tais como a neve quando está no inverno, e músicas natalinas quando a personagem está trabalhando na Amazon, implicando em um serviço oferecido apenas na temporada de festas de fim de ano, não é possível saber quando e onde Fern está exatamente. Isso pouco importa para a narrativa, e pouco importa na vida dos nômades também, já que o objetivo é encontrar uma forma de ser remunerado para continuar sobrevivendo, não há tempo de se olhar para um calendário quando a prioridade é continuar vivendo.

Mais do que lidar com a questão da falta de assistência social e financeira sofrida pelos nômades, e como isso ajuda na manutenção desses subempregos que permite às grandes empresas uma forma de lucrar gastando pouco, Nomadland também toca na ferida ao expor que os EUA dos sonhos ficam mesmo só nos comerciais dos parques da Disney, já que a maior parte dessa comunidade é formada por norte-americanos, e não por imigrantes estrangeiros, e nascer no país não impediu que eles também se tornassem vítimas do capitalismo selvagem praticado na maior potência econômica do mundo.

Por mais que o filme não romantize a situação desses nômades contemporâneos, ainda assim ele trabalha a resiliência desse grupo, no qual a maioria dos indivíduos, apesar das dificuldades de viver se deslocando pelo país sem nada garantido, e ter como lar o espaço bastante limitado de estruturas improvisadas em seus veículos, fazem isso da maneira mais sustentável possível. É claro que eles não são pessoas totalmente deslocadas da vida moderna, até porque sempre mantêm consigo seus celulares, por onde frequentemente acompanham o canal de Bob Wells no YouTube. Mas, ainda assim, se preocupam com o quanto poluem, se preocupam em descartar seus resíduos e dejetos sem agredir a natureza. Além do mais, a maioria dos nômades considera que a vida minimalista que levam também é uma forma de resistência à brutalidade do capitalismo e da sociedade de consumo, embora reconheçam que escapar dessa rede é complicado, já que ainda dependem do dinheiro para sobreviver.

No fim, não é necessário se deixar cegar pela fantasia da vida nômade enquanto libertadora, para reconhecer que, em meio às complicações que levam cada vez mais pessoas a ‘aderirem’ a essa vida, esse nomadismo moderno precisa ser encarado como uma nova cultura em formação, que ao mesmo tempo que tem sua identidade formada, também forma as identidades daqueles que seduziu.

Nomadland não trata com coitadismo as pessoas dessa comunidade, colocando-os na passiva posição de quem aceita qualquer subemprego por saber que precisam trabalhar até morrer. Ao contrário, é respeitoso para com aqueles que retrata, e apresenta com sucesso uma cultura que emerge com o fracasso do capitalismo, uma cultura que surge enquanto uma forma de sobrevivência, pois já que não foi possível escapar da lógica capitalista, é preciso agarrar-se à possibilidade de resistir e (re)existir em meio a ela.


Referências

NOMADLAND. Disponível em: <https://www.imdb.com/title/tt9770150/>. Acesso em: 25 abr. 2021.

NOMADLAND NA ROCCO! Disponível em: <https://www.rocco.com.br/blog/nomadland-na-rocco/>. Acesso em: 28 abr. 2021.

OSCARS WINNERS 2021. Disponível em: <https://abc.com/shows/oscars/collection/winners>. Acesso em 30 abr. 2021.

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