Por Cristine Lois Coleti Sierra
Introdução
As discussões do dia 15 de setembro de 2021 no Grupo dos Estudos Culturais das Ciências e das Educações iniciaram com uma breve recapitulação pelo professor Moisés das leituras realizadas nas semanas anteriores: “Gênese e desenvolvimento de um fato científico”, de Ludwig Fleck, e “A estrutura das revoluções científicas”, de Thoman Kuhn. Para a semana em questão, foi proposta a leitura referente à primeira parte do livro “Contra o método”, de Paul Feyerabend – cujas discussões finalizaram na semana seguinte, em 22 de setembro. Segundo a fala do professor, Fleck foi a base e a inspiração para vários autores, e Kuhn, que o recuperou fortemente, trabalhou nos conceitos e nas noções de paradigma. Então, iniciamos agora um novo autor, Feyerabend, que, numa leitura mais aligeirada, é alguém que deu uma sequência a Kuhn, diante de um projeto de chamar a atenção para as condições sociais que os outros dois autores propuseram em suas obras, contribuindo para a instituição do campo denominado de “Estudos de Ciências”. Moisés destaca que uma das principais influências de Paul Feyerabend é uma crítica à epistemologia. Apesar de não dar conta realmente de escapar do conceito epistemológico em seus trabalhos, há ao menos um princípio, um ensaio desta crítica, aos métodos que buscam dentro de uma certa ordem positiva a instituição de uma ciência dura.
Por questões de recorte teórico e da possibilidade de delimitar a extensão do texto, o presente escrutínio se aterá a dois conceitos que permearam os debates deste encontro em vários pontos de sua extensão: o pluralismo metodológico e o anarquismo metodológico – incluindo o ponto da (não) adequação do termo ‘contra o método’.
Após a introdução do professor Moisés, o debate inicia então com a colega Gabriela já pontuando sobre o pluralismo metodológico, pois, numa primeira leitura feita, ela entendeu que o autor parecia falar de um pluralismo de metodologias científicas, mas, após uma leitura seguinte, lhe pareceu na verdade um pluralismo de metodologias não puramente científicas. Ela ainda destaca que, em muitos momentos, a leitura lhe lembrava Bruno Latour, pois é posto que quanto mais articulado esse pluralismo, quanto maior a quantidade de caminhos trilhados para investigar, testar, para compreender as ciências, mais rico isso será. Moisés indaga se essa reflexão está numa parte do texto em que Feyerabend não está mais operando numa perspectiva epistemológica, e ela traz uma citação para o debate:
A educação científica, tal como hoje a conhecemos, tem precisamente esse objetivo. Simplifica a ciência, simplificando seus elementos: antes de tudo, define-se um campo de pesquisa; esse campo é desligado do resto da História (a Física, por exemplo, é separada da Metafísica e da Teologia) e recebe uma ‘lógica’ própria. (FEYERABEND, 1977, p. 21)
O professor, então, retoma que a ideia central de Feyerabend é justamente ‘contra o método’. Nesse sentido, a ideia de metodologia é central na obra. O trecho destacado por Gabriela é, segundo o professor Moisés, o que Latour fala, em outras palavras, “a natureza costuma se render aos cientistas, desde que a natureza venha toda ‘empacotadinha’”.
Assim, Feyerabend começa aqui, então, a fazer uma crítica dizendo que essa simplificação – de métodos e sujeitos – que a ciência faz é a única forma possível que ela tem de se manter numa posição de privilégio discursivo do ponto de vista do método. Concluí que, desse modo, a reflexão de Gabriela demonstra esse pensamento de Feyerabend, segundo o qual uma metodologia plural pressupõe também sujeitos plurais.
O colega Alex completa, então, que essa reflexão destacada por Gabriela lhe chamou muito a atenção, pois reflete de alguma forma a sua vivência enquanto professor da Educação Básica, uma vez que a dinâmica da sala de aula com as crianças e adolescentes é uma tentativa de colocar tudo de um modo sistematizado, e a vida segue com uma facilidade extrema como se fosse possível deduzir tudo a partir do que está colocado ali.
O colega Valter segue então o debate, falando sobre a sua simpatia por Feyerabend, mas que, na verdade, foi um amor platônico, fazendo uma analogia, na qual se ama a distância, sem se aproximar muito. O colega deixa também uma especulação em aberto de que, não se sabe se por questões de tradução, “Against method”, do original em inglês, poderia ser não necessariamente “contra o método”, mas sim, “para além do método”. Ele segue, então sugerindo a leitura do seguinte trecho:
Parte essencial do treinamento, que faz com que fatos dessa espécie apareçam, consiste na tentativa de inibir intuições que possam implicar confusão de fronteiras. A religião da pessoa, por exemplo, ou sua metafísica ou seu senso de humor (seu senso de humor natural e não a jocosidade postiça e sempre desagradável que encontramos em profissões especializadas) devem manter-se inteiramente à parte de sua atividade científica. Sua imaginação vê-se restringida e até sua linguagem deixa de ser própria. E isso penetra a natureza dos ‘fatos’ científicos, que passam a ser vistos como independentes de opinião, de crença ou de formação cultural. (FEYERABEND, 1977, p. 21)
Valter trouxe a análise desse trecho porque dá exatamente a ideia de que para se fazer ciência – ou então para que se produza um conhecimento teórico, digno de receber tal chancela – é preciso desvestir-se daquilo que se é, de todas as idiossincrasias próprias, de tudo que constitui cada um. É como se tudo isso precisasse – e fosse – deixado na porta para que, então, se entre num laboratório, numa biblioteca, na casa da ciência, onde se vai para produzir um determinado tipo de conhecimento. Para o colega, Feyerabend está apontando que isso é justamente impossível. E é nesse ponto que Valter percebe alguma similaridade com Latour, contra a ideia de que é possível uma purificação na produção do conhecimento.
Na sequência, o colega Marlon dá continuidade ao debate, iniciando com sua percepção de que Feyerabend é uma das personalidades injustiçadas da academia. Ele justifica que, ao ler sobre a biografia de Paul Feyerabend, notou que ele rodou por muitos países. E ele especula que a questão de ele ser mal lido – como o professor pontuou em um momento anterior, citando uma palestra assistida – é justamente para invocar Imre Lakatos, pois aquele não se insere em um programa de pesquisa formal. Desse modo, Feyerabend não tem uma raiz para de fato consagrar seu pensamento principalmente por ele defender algo que está indo contra praticamente tudo. Marlon cita ainda o fato de que esse livro foi escrito de forma exagerada pelo anarquista científico justamente na esperança de que Lakatos respondesse aos seus exageros, a fim de promover de fato um debate epistemológico – o que, de fato, não se concretizou, pois, este acaba falecendo antes.
Muito oportunamente, Marlon segue assinalando que o anarquismo epistemológico proposto por Feyerabend não pode ser comparado com o anarquismo político, visto que a proposta feyerabendiana não é romper com toda e qualquer metodologia, mas, sim, traçar um caminho de complementaridade, alternativo. É olhar para as teorias, construídas com o método hegemônico, e pensar como contrapô-las. E, para contrapor-se a elas, não se pode eliminá-las, abandoná-las. Sendo assim, o autor estaria caminhando entre um estruturalismo, esboçando um pós-estruturalismo.
O professor Moisés reforça, então, que é exatamente por isso que é preciso ser cauteloso na leitura e no estudo das ideias deste autor. E, ainda mais, que a própria disputa com Feyerabend é também uma provocação de Lakatos. Foi uma tentativa de ambos de realizar uma espécie de teatro, mas a própria instituição dessa peça é em si um teatro, porque Feyerabend colocou em funcionamento uma ordem discursiva muito particular. Moisés segue, corroborando a ideia do colega Marlon, de que, em alguns momentos, Feyerabend é provocativo, alfinetando não só Lakatos em si – embora ele também –, mas um processo epistemológico, uma epistemologia positivista fortemente instituída dentro do campo da pesquisa.
Na sequência, o colega Leonardo traz suas percepções acerca da leitura realizada por ele pela terceira vez – sendo que cada uma delas lhe trouxe entendimentos de maneiras diferentes. Nesta re-releitura, ele relata que ficou imaginando que esse posicionamento de Feyerabend não é exatamente ‘contra o método’, como o Valter já havia pontuado. O mais adequado, segundo Leonardo, lhe parece ser ‘contra a razão’. É o principal foco, sendo o que ele chama de antirracionalista. Lendo dessa forma, ele acabou interpretando a obra não mais como um ataque à ciência ou um ataque à epistemologia em si, mas a uma particularidade da epistemologia racionalista, uma racionalidade científica que se pressupõe neutra, imparcial, superior a outros modos de ver o mundo. Leonardo pontua que isso implica, inclusive, na educação, pois isso construiria uma educação muito pouco humanista, que cala adversários, que cala dúvidas, e que não sabe lidar muito bem com as incertezas, com o caos produtivo do mundo.
A exposição acima acaba auxiliando a colega Gabriela na retomada da sua ideia inicial acerca do pluralismo epistemológico, destacando o seguinte trecho, o qual a levou a conjecturar que este conceito não estava ligado apenas às ciências, mas num sentido mais geral. Veja:
Reconhecemos que a pluralidade há de ser assegurada por entidades não-científicas, suficientemente poderosas para sobrepujar as instituições científicas de maior prestígio. Exemplos seriam a Igreja, o Estado, o partido político, o descontentamento popular ou o dinheiro. (FEYERABEND, 1977, p. 70)
Mais à frente, o colega Leonardo retoma a questão do anarquismo feyerabendiano, questionando como o grupo pensou esse conceito. A colega Ana, então traz o seu entendimento. Ela inicia destacando que, em um dos trechos, Feyerabend se designa mais como um dadaísta, e sublinha o seguinte trecho:
Um dadaísta está convencido de que uma vida mais digna só será possível quando começarmos a considerar as coisas com leveza e quando afastarmos de nossa linguagem as expressões enraizadas, mas já apodrecidas, que nela se acumularam ao longo dos séculos (‘busca da verdade’; ‘defesa da justiça’; ‘preocupação apaixonada’; etc., etc.). Um dadaísta está preparado para dar início a alegres experimentos até mesmo em situações onde o alterar e o ensaiar parecem estar fora de questão. (FEYERABEND, 1977, p. 26)
Ou seja, para ela, o autor usa o termo anarquismo para salientar que o caos é, na verdade, um espaço para a produção da ciência. Em outro trecho, Feyerabend afirma que os avanços científicos “só ocorreram porque alguns pensadores decidiram não se deixar limitar por certas regras metodológicas ‘óbvias’ ou porque involuntariamente as violaram.” (FEYERABEND, 1977, p. 29). Então nesse sentido, ela pensa que não devemos ficarmos presos às regras, e o anarquismo se refere mais a isso, e não à política.
Gabriela segue então entendendo anarquista não no sentido de bagunça, um caos no momento de realizar uma pesquisa ou de estudar ciência, mas levando em consideração outros aspectos que, se fosse seguido um método científico à risca e de modo estrito, não poderiam ser vislumbrados. Conectando com Latour, sobre o ‘tudo vale’, que, ao fazer uma investigação, o pesquisador leva em consideração outras coisas, mais elementos, talvez não só científicos, ponderando toda a complexidade do emaranhado que é se estudar a ciência. O professor Moisés, então, pede pra ela retomar essa ideia do que significa o ‘tudo vale’ de Latour, e a colega então explica que eles estavam discutindo que não significa que pode fazer tudo, não há regra, mas que, se comparado com empiristas ou positivistas, por exemplo, será aberto um leque de possibilidades, tornando a investigação mais complexa.
Então Moisés destaca que é esse o caminho e acaba relacionando esse raciocínio com o fato de que, portanto, Feyerabend não era exatamente ‘contra o método’, mas uma ampliação do método. E destaca, ainda, um trecho de “Contra o método” que revela essa ponderação:
Criação de uma coisa e geração associada à compreensão de uma ideia correta dessa coisa são, muitas vezes, partes de um único e indivisível processo, partes que não podem separar-se, sob pena de interromper o processo. (FEYERABEND, 1977, p. 32)
Nessa citação, Feyerabend restabelece, desse modo, a noção de que há uma inseparabilidade entre a instituição da própria natureza e a ação dessa instituição. Essa anarquia feyerabendiana está num sentido de que, se parar a ação, se definir de vez, ocorre um apodrecimento. As raízes criadas são profundas, mas podres.
Referência
FEYERABEND, Paul. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
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