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THOMAS KUHN: UM AUTOR MULTI-INTERESSANTE

Atualizado: 17 de mar. de 2022


Por Leonardo W. Soares de Melo


Introduzindo o escrutínio


Thomas Kuhn desenvolveu uma obra multi-interessante. Começar este texto com tal assunção não implica em conceder de imediato a este autor um posicionamento acima das críticas no debate acadêmico, mas em reconhecer, inevitavelmente, o impacto de suas contribuições históricas e sociológicas para os âmbitos de epistemologias das Ciências. Pude corroborar essa conjectura nas discussões de seu livro: “A estrutura das revoluções científicas”, em nosso encontro semanal do Grupo de Estudos Culturais das Ciências e das Educações (GECCE), no dia 25 de agosto de 2021.

Fui o encarregado de registar os movimentos emergentes das discussões naquela manhã. Aceitei de bom grado a atribuição, pois se tratava de minha terceira leitura dessa obra, o que me conferiu certa segurança em meio às demandas por deslocamento entre a mediação das discussões e as anotações em curso durante o encontro. Particularmente, senti na releitura de Kuhn (2017) a oportunidade de dar uma nova chance a um autor que já me comoveu de diversas maneiras ao longo de minha trajetória de pesquisas em Ensino de Ciências – da euforia durante o mestrado à rejeição eventual mais recentemente.

Na esteira dessas questões, descrevi nas linhas seguintes um pouco do que foi discutido em nosso grupo de pesquisa sobre a obra magna de Thomas Kuhn (2017). Ressalto não ter se tratado de um bate-papo de todo harmônico, pois os interesses aflorantes foram diversos. Em todo caso, creio que as controvérsias eram previsíveis e foram bem-vindas, dada a dimensão intelectual e política de “As estruturas” nos desdobramentos das discussões acadêmicas sobre as Ciências. Espero que o retrato a seguir possa surtir no leitor um efeito semelhante ao que aquela manhã de debates significou para mim e para nosso grupo de pesquisa.


Os momentos de discussão: a perspectiva mundana e as tensões afloradas


Iniciei a sessão de debates com uma indagação depreendida da perspectiva desenvolvida por Kuhn (2017). Na introdução, o autor abordou sobre a iminência de uma revolução ocorrendo na historiografia das Ciências em seu período, emergente das dúvidas e dificuldades encontradas pelas perspectivas que encaravam o progresso científico enquanto processo cumulativo e individual. Nas palavras do autor, essa mudança de olhar de epistemólogos e historiadores das Ciências se deu em sentido de que, “Em vez de procurar as contribuições permanentes de uma ciência mais antiga para nossa perspectiva privilegiada, eles procuraram apresentar a integridade histórica daquela ciência a partir de sua própria época” (KUHN, 2017, p. 62).

Essa mudança de perspectiva em relação ao progresso das Ciências me pareceu um bom ponto de partida de discussão. Tentando desenvolver tal assunção, propus ao grupo os seguintes questionamentos: afora o ferramental da historiografia das Ciências apresentado por Thomas Kuhn, quais outros modos possíveis de analisar as trajetórias das Ciências podemos conjecturar? E quais suas diferenças em relação ao ponto de vista historiográfico?

Nesse seguimento, professor Moisés amplificou minha própria indagação. Alertou para a existência de dois tipos de historiografias particulares: uma que se dedicava a transformar a memória monumental em documentos; e outra fabricante de documentos a partir de monumentos, num processo de reunião, isolamento, reagrupamento e conjunção de registros – nas palavras de Foucault (2008), de: “descrição intrínseca do monumento” (p. 09).

Devo dizer que a proposição inicial e o incentivo do professor não produziram os desdobramentos ensejados, mas isso pouco importou. Notei sua serventia para o despontamento de resumos e panoramas sobre a obra por parte de outros colegas. Nesse momento, percebi os diversos interesses despontantes em torno da obra de Kuhn (2017), em sua maioria, reconhecedores de sua importância em relação aos modos de encarar o progresso das Ciências. Se pudesse resumi-los em uma só frase, usaria um comentário habitual do professor Moisés: a paradigmatologia de Kuhn (2017) permitiu mostrar que a Ciência não está fora deste mundo. Em outras palavras, se as teorias científicas têm pressupostos lógicos e internos que instituem as práticas concorrentes de cientistas, de outro modo, esse processo só é produzido por uma mobilização coletiva. Mais precisamente: “os paradigmas podem ser anteriores, mais cogentes e mais completos que qualquer conjunto de regras para a pesquisa que deles possa ser claramente abstraído” (p. 119).

Disso emergiu um debate sobre o papel político do livro de Kuhn. Em suma, centralizamos as discussões na conjuntura de que sua epistemologia, apesar de significar uma ruptura em relação ao logicismo popperiano, foi muito bem recebida entre cientistas e pesquisadores. Nas palavras de Isabelle Stengers, cientistas: “gostam bastante dos ‘paradigmas’ de Kuhn. Até reconhecem neles uma descrição afinal pertinente de sua atividade. A noção de ‘revolução paradigmática’, em consequência da qual um paradigma substitui outro, lhes serve para contar a história de sua disciplina” (STENGERS, 2002, p. 13).

A partir deste momento, as impressões otimistas em relação a Thomas Kuhn deram lugar a considerações críticas, no sentido mais produtivo desse vocábulo. Surgiram comentários sobre a epistemologia kuhniana ainda expressar uma perspectiva positiva (em senso filosófico) em termos do progresso das Ciências, em face do internalismo de seus exemplos históricos e argumentações. Também se comentou sobre a concepção de ‘revolução’ em Kuhn ser muito mais abrupta em relação ao conceito de ‘mutação’ proposto por Ludwik Fleck (2015), que fora nossa última leitura. Em última análise, as discussões foram deslocadas para um espaço de disputas, tornando as próprias argumentações no que se refere à obra uma controvérsia aberta.


Essa mudança ficou expressa pela transferência dos debates para o modo de ler a obra de Kuhn (2017). Esqueci de mencionar, mas começamos a leitura pelo posfácio, seção em que o autor tentou remediar certas confusões teóricas, principalmente em torno da polissemia do conceito de paradigma. Sobre essa escolha, uma colega alegou seu descontentamento, mencionando ter se sentido lendo uma trama de suspense iniciando pelo final, como se buscasse descobrir de uma vez quem era o assassino. Após algumas exposições, eclodiu um embate sobre a política interna do grupo, em termos das relações de poder operando nas escolhas das leituras e seus procedimentos, uma vez que a sugestão de iniciar pelo posfácio fora proferida por um de nossos colegas filósofos participantes.

Desse aspecto, as disputas sobre a teoria de Thomas Kuhn (2017) se enredaram às formas de analisá-lo coletivamente pelo grupo de estudos. Isso me permitiu entender que a leitura de uma obra não ocorre em si, pois está fadada à diversidade dos olhares presentes nos espaços de apreciação. Falando em termos da perspectiva foucaultiana de discurso, estudar um discurso não se trata de fundar uma cumplicidade primeira com o mundo, pois:


“Se o discurso existe, o que pode ser, então, em sua legitimidade, senão uma discreta leitura? As coisas murmuram, de antemão, um sentido que nossa linguagem precisa apenas fazer manifestar-se; e esta linguagem, desde seu projeto mais rudimentar, nos falaria já de um ser do qual seria como a nervura” (FOUCAULT, 1996, p. 48)

Não me parece ter sido essa a resultante de nosso encontro, pois não estamos acostumados com leituras discretas. Os discursos produzidos nas reuniões do GECCE não operam como teorias, que buscam verdades camufladas na natureza das obras (fatos), sob o risco de transformar ponderações espontâneas em ficções corrompidas (artefatos). De outro modo, as verdades em jogo em nossos encontros funcionam enquanto hábitos, sendo a via da coletividade sua única possibilidade.


Considerações (sem) finais


Não pretendo esgotar o leitor em demasia com impressões particulares sobre um encontro semanal do GECCE. Penso que esses exemplos foram suficientes para expressar a multiplicidade de interesses emergente em torno da obra de Kuhn (2017), tornando os próprios meios de mobilização de sua leitura um produto de controvérsias abertas.

Para um grupo de Estudos Culturais das Ciências, essa multiplicidade de posicionamentos refletiu a influência irremediável de “A estrutura das revoluções científicas” para os debates epistemológico e culturais das Ciências. Desse aspecto, ao substituirmos as essências pelos hábitos, as causalidades estritas pelas contingências, nos afastamentos das armadilhas da racionalização, sendo possível depreender, sem maiores pesares: Thomas Kuhn é um autor multi-interessante. Que isso não seja subjugado por dedução.


Referências


FLECK, L. A gênese e o desenvolvimento de um fato científico. São Paulo: Fabrebactum, 2015.


FOUCAULT, M. A ordem do discurso, 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.


KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1997.


STENGERS, I. A invenção das ciências. São Paulo: Editora 34, 2002.


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