Por Susan Caroline Camargo
Prelúdio
Apucarana, 22 de setembro de 2021. Como de costume, antes da discussão da leitura semanal sempre recebemos do professor Moisés os informes e atualizações dos acontecimentos recentes no programa, e na universidade como um todo. Nessa semana, entretanto, apesar de ter lembrado da inspiração e contribuições que o professor Alfredo Veiga-Neto nos deixou na entrevista concedida na semana anterior para nossa revista, o que mais chamava a atenção – e não de uma forma tão positiva quanto gostaríamos – era o discurso que o atual presidente do Brasil realizou na véspera da reunião do GECCE, quando marcou presença na 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York. Sem economizar nas falácias, que apenas serviram para descredibilizar ainda mais a imagem dos brasileiros perante a imprensa internacional, Bolsonaro não surpreendeu em repetir a irresponsabilidade e incompetência já típicas em seu mandato, que iniciou em 2018, mas que já o acompanham nos mais de 30 anos de sua ‘carreira’ política. A lembrança ao fatídico discurso foi bem breve, mas necessária, já que o sentimento de indignação era coletivo, e tamanho acontecimento não passa ileso por nós, brasileiros, que já seguimos tomando tantas rasteiras desse governo genocida. Considerei igualmente necessária a menção a esse desabafo do professor no início de reunião, porque acredito que, se ainda há luta e resistência, é também graças aos desabafos que têm nos ajudado a recobrar o fôlego para seguirmos. Sendo assim, seguimos para a obra de Feyerabend.
Reimergindo nos pensamentos de Feyerabend
O professor abre o debate mencionando que, talvez, com a discussão da segunda metade do livro, finalmente talvez déssemos conta de entender sua escolha de título para o livro que discutíamos, a obra “Contra o método”, cuja publicação original ocorreu em 1975.
Um dos colegas pontua que gostou bastante da leitura da segunda parte do livro e que, embora não tenha sentido muita inovação com relação à primeira parte, considerou que Feyerabend conseguiu desenvolver melhor as ideias postas anteriormente, inclusive fazendo uso de exemplos e de elementos filosóficos que fortaleceram os argumentos do autor.
Um outro colega disse que apesar de já ter lido a obra anteriormente, com essa última leitura sentiu um fortalecimento na ideia de Feyerabend não ser simplesmente contra o método, para discutir o título de seu livro. Para o colega, o filósofo é contra os padrões do método, e dessa forma, contra o racionalismo que sempre é tomado a priori. O colega sustenta seu entendimento, dado o fato de Feyerabend posicionar-se enquanto um antirracionalista, que critica duramente vários dos conceitos das epistemologias racionalistas, bem como algumas ideias de Popper e Lakatos. Ademais, o colega expressa que, embora para alguns, as ideias de Paul Feyerabend pareçam estranhas nos tempos atuais, em seu próprio tempo elas foram revolucionárias por discutirem a ciência de uma forma política, algo não visto anteriormente ao filósofo.
O professor Moisés pontua, então, que um outro aspecto interessante da obra de Feyrabend diz respeito aos deslocamentos que ele realiza para o campo educacional, principalmente quando discute alguns conceitos de história da física, área pela qual o intelectual passou durante sua graduação, antes de rumar para a filosofia.
O professor, então, indaga ao grupo se é perceptível para todos a lógica que Feyerabend discute perpassar a ciência do modo como é praticada nos departamentos das universidades, uma espécie de potência enunciativa que rege a ciência ‘acadêmica’.
A pergunta do professor, embora não tenha sido respondida de imediato, serviu como tema gerador para as discussões da manhã, já que, em diversos momentos, ela foi retomada, com os colegas compartilhando sua própria visão acerca dessa engenharia que perpassa a ciência ‘universitária’.
Percebendo que o grupo estava um pouco mais quieto, parecendo um pouco intimidado com a escrita do filósofo estudado, o professor indagou se todos haviam conseguido ler a segunda parte do livro. Nesse momento, um dos colegas timidamente admitiu que leu, porém de uma forma um pouco corrida.
No entanto, a correria da leitura não o impediu de trazer contribuições valiosas para a reunião, como a discussão de Feyerabend acerca de julgarmos uma controvérsia sem conhecê-la, baseando-nos apenas nas nossas próprias ideias. No livro, o filósofo levanta a importância de repensarmos nossa responsabilidade enquanto cientistas, no modo como agimos ao nos depararmos com uma controvérsia. Para isso, ele usa o exemplo dos cientistas que criticam a astrologia sem saber do que se trata, reduzindo suas críticas a uma ridicularização, sem conseguir sustentar o argumento sobre onde a astrologia falha de fato. Acredito que a observação do colega quanto à importância desse trecho do livro de Feyerabend cai como uma luva no tempo em que nos encontramos, em que, dia após dia, nos deparamos com adeptos do movimento anti-vacina, terraplanismo, entre outras desinformações latentes e que ganharam ainda mais força durante a pandemia.
Confesso, é bastante difícil manter a calma e segurar o riso frente a certos absurdos com que, vez ou outra, nos confrontamos, mas é preciso, sim, desenvolver estratégias de lidar com essas controvérsias de maneira mais séria, buscando entendê-las em sua base, para só então partirmos para o desmonte dessas crenças que prejudicam até mesmo a integridade física das pessoas.
A discussão proposta pelo colega fez com que o professor lembrasse de outro importante trecho do livro de Feyerabend, no qual o filósofo alerta que aqueles que vieram apreciar sua obra em busca de algum tipo de substituto aos métodos e às rotinas científicas por formas de senso comum, se enganaram, pois, no fim das contas, ele não poderia substituir a ciência, que já é um conjunto de coisas da ordem do sonho, da fantasia, por outro conjunto semelhante. Com isso, o filósofo nos leva a pensar que não faz sentido tentar colocar para dentro do pensamento científico argumentos que são específicos de outras áreas do pensamento. Isso, porque a ciência sempre foi também uma crença, e o próprio método científico em si já é uma crença, uma forma de gerar um sistema de valores bem claros e bem específicos no mundo.
Concordando com a colocação de Feyerabend, o professor localizou a discussão pensando no GECCE, mais especificamente, que, enquanto parte de um grupo que trabalha com cultura, nós não precisamos tentar forçar um movimento para dentro do outro, mas olhar a prática que perpassa aquela situação. Inclusive, mencionando uma acusação que alguns críticos fazem aos estudos culturais e aos estudos de ciência, que dizem respeito justamente a uma certa preocupação internalista que existe na área. Isso serve para alertar a nós, enquanto pesquisadores do campo dos estudos culturais e das ciências, de que a preocupação com o local não pode atenuar a importância de se buscar uma visão macro, mais global para o interior das práticas, e a percepção de como as crenças se constituem em determinados jogos discursivos.
De volta à superfície: emergindo em busca de um fechamento
Após uma breve pausa para o café, retornamos em busca de um fechamento, uma síntese das contribuições que a leitura da obra de Feyerabend havia nos deixado.
Em dado momento, um dos colegas, contribuindo com essa segunda rodada de discussões, comentou sobre a separação entre estado e igreja que o filósofo discute no livro. Para o colega, reconhecer a produtividade de Feyerabend em tocar nesse ponto é, entre outras coisas, política. Isso porque, apesar de ele fazer uma crítica às ciências e à racionalidade científica, vistas sob a ótica de um método único, melhor e verdadeiro sobre o mundo, o filósofo também apresenta uma posição sobre o que é uma sociedade livre, liberta.
Para mencionar um exemplo, o colega trouxe um trecho onde Feyerabend esclarece que a ciência não tem autoridade maior que qualquer outra forma de vida, e que não tem objetivos mais importantes que os propósitos orientadores de uma comunidade religiosa, ou de uma tribo unida graças à existência de um mito. Com esse trecho, o intelectual estudado se posiciona de uma forma um tanto polêmica, por considerar que a ciência não deve deter o poder de restringir as vidas, os pensamentos e a educação como um todo, dos integrantes de uma dita sociedade livre. Isso porque vivendo em liberdade na sociedade, cada um tem a possibilidade de decidir por si mesmo, e de viver de acordo com as crenças sociais que julgue mais aceitáveis.
Com isso, a crítica atinge de maneira forte aqueles que defendem que a ciência deva restringir a sociedade, impondo-se como um método melhor, um padrão superior a todos os outros.
Uma observação, no entanto, é que, por melhor intenção que Feyerabend tenha tido em criticar essa autoridade conferida às ciências, o conceito de sociedade livre que ele apresentou pode ser percebido como sendo bastante ingênuo; afinal, não é simples considerar que os indivíduos possuem condições de pensar deterministicamente sobre o que que é melhor para suas próprias vidas. Existem influências e interferências que escapam à idealidade da sociedade livre.
Calhando com o quão os indivíduos são livres em suas escolhas, retoma-se mais uma vez a discussão acerca das atuais controvérsias que pairam no mundo, e as temerosas fake news. Aliás, acerca destas últimas, considerei muito interessante a contribuição de um colega, que, citando um artigo de Tommaso Venturini, intelectual contemporâneo que se destaca nos estudos sobre controvérsias, comenta que o próprio conceito de fake news já pressupõe que se sabe o que que é feito e o que não é feito a priori.
Desse modo, essas notícias falsas não surgem com um rótulo de verdade ou mentira. Isso porque, de início, se trata de propagação da informação, ao passo que se pode adotar também o conceito de junk news, além do já difundido fake news quando se refere a essa propagação desenfreada de informações equivocadas. O termo junk (lixo) é empregado do mesmo modo que na expressão junk food para se referir aos alimentos atrativos visualmente, mas pobres em valor nutricional, tais como os lanches do Burguer King, McDonald’s, entre outras redes de fast food.
As junk news, tais como as junk foods, não são provenientes de um processo de reflexão quanto às consequências de seu consumo a longo prazo na vida das pessoas. Tal como esses alimentos que são consumidos em um processo automático na busca pela praticidade, as fake news são muitas vezes apenas replicadas sem que sequer a pessoa que participa dessa cadeia de transmissão tenha lido seu conteúdo, valendo-se muitas vezes apenas da manchete que a acompanha. Isso porque pouco importa se é verdade ou mentira; o que importa é transmitir a informação.
Considerei importante destacar esse trecho, porque particularmente ainda não havia pensado nas fake news dessa maneira e desconhecia o trabalho de Venturini.
Mais ao final da reunião, percebeu-se que, tal como outras leituras já realizadas no grupo, a obra de Feyerabend também não poderia ser esgotada em dois encontros, mas isso não é algo ruim. Isso porque essas obras inesgotáveis em geral são as que mais reverberam em nossas discussões, já que as contribuições que elas deixam servem como um novo ponto de vista acerca das coisas, e essa obra em particular afetou o modo como lidamos com a racionalidade das ciências.
Certamente, de agora em diante, as contribuições de Feyerabend farão com que muitas coisas que, antes da leitura pudessem passar despercebidas, ganhem um novo tom e não mais sejam capazes de ser ignoradas.
Referência
FEYERABEND, Paul K. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
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