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Moisés Alves de Oliveira

Apalpadelas: modos de fazer pesquisa nos estudos culturais das ciências.

Por Moisés Alves de Oliveira

 

Segundo Latour (2000, p. 12), “a escolha da porta de entrada depende crucialmente da escolha do momento certo”. Mas este momento está sempre em movimento, é como diz a palavra, abstrato, não é mais do que um instante e pouco diz da posição da porta, mas apenas que é o local pelo qual podemos passar. Atravessar não dá garantias do que se pode encontrar do outro lado, é ao contrário, o momento em que se passa de contextos mais eficientes, portanto mais articulados, para outros, nos quais se terá que decidir o que é eficiência portanto, inarticulados. Fica a angústia, a expectativa, a necessidade de tomar uma posição entre a incerteza do que encontrar e as forças que conduzem para um outro lugar. O momento de passagem pela porta é o instante mágico; não guarda nada de real, mas é onde tudo acontece. A porta é esta criação que nos dá uma ferramenta importante, a noção de intermediário entre conhecido e desconhecido, entre a presença e a ausência, entre a certeza e a incerteza; foi criada para que nem de um lado nem do outro exista algo superior, algo indestrutível, algo onipotente. Parece que todo o jogo se dá no momento da travessia.

Esse texto foi escrito há quase vinte anos e ainda hoje é possível sentir a pulsação do campo de pesquisa a que ele remete. Quis, no primeiro volume desse panfleto, que decidimos no Grupo de Estudos Culturais das Ciências e das Educações (GECCE), chamar de quase-ciências, revisitar alguns passos já dados, e trazê-los aqui para uma releitura a fim de manter viva a pergunta, testar o que ainda é possível sustentar da escrita de uma metodologia de pesquisa após os testes de torção advindas de outras experiências, ao mesmo tempo, sempre que possível, mantendo traços em que foi forjada nas relações de domínio que são postas a funcionar para construir uma noção de pesquisador.

Foleando o diário pessoal à busca de elementos para essa escrita encontrei logo na primeira página aberta um post-it com anotações que (re)territorializou os arranjos tão triviais que esquecemos de sua importância nas agonísticas da produção de uma pesquisa, quando ela ainda está em construção.


Propus ao orientador uma alteração empírica, em vez de estudar as visões dos leigos por meio de entrevistas, ir a campo (etnografia) ver como determinados grupos antuagem (um neologismo que estava ensaiando para manter em uma só palavra as condições de existências do agir e do pensar, depois foi aprimorada para frontagir). Ele disse para eu manter-me firme nos meus objetivos... negou!

Para o negacionista, negação e meia. Há movimentos com os quais somos incapazes de resistir. Pouco tempo depois a etnografia saltou para a frente no caminho e já estava em campo. Essa foi uma das muitas passagens em que as argumentações do professor de metodologia, Lúcio Kreutz, alardeava constantemente faziam sentido: “Dada a dificuldade em estabelecer um método único para uma pesquisa, talvez se deva, em vez de tentar criar identidades fixas ao trabalho experimental, dizer o que se fez”. Esse conselho parece bastante proveitoso nesse momento, já que dá possibilidades de mais vozes fazerem parte da narrativa, daquilo que apreendi no período de doutoramento, no que se refere à metodologia. É, talvez, a mais bem formulada proposta, pois, ao mesmo tempo que permite engajar várias metodologias, torna-as ativas e remanejáveis, rearticuláveis de acordo com as contingências dos eventos; é a mais democrática das táticas. Porém, não a mais objetiva, tampouco é fácil descrevê-la, dizer o que se fez, implica mais trabalho, dizer de mais agonísticas, incluir mais aliados, em vez de tornar as coisas mais rápidas, torna-as mais complexas. Este é o objetivo que pretendo desenvolver nesse texto: contar como fui, devagar e aos tropeços, sendo criador e criatura da opção metodológica tendo como motivação, em vez de acatar e citar metodologias eficientes, decidir o que é eficiência.

O verbo decidir, quando empregado em metodologias de pesquisa de campo, dá a falsa impressão de autonomia do pesquisador. Foi preciso várias expedições teóricas e experimentais a territórios desconhecidos, acumular montanhas de informações desconexas que a prática etnográfica é célere em fornecer e preguiçosa para articular e fazer convergir em um interesse, um campo, onde eles pudessem ser acionados e transformados em recursos producentes e capazes de recircular nas arenas de onde foram aliciados. Dar ordem! Fazer fazer sentido! É o que mais faz falta e que mais se deseja frente ao emaranhado de informações em ululante motim! Decidir, apressadamente, nessa fase, foi, quase sempre, para mim, a passada errada na direção da simplificação e da distorção da realidade. Demorar-se preguiçosamente nos detalhes, nos arredores, nas minúcias foi a chave!

No que diz respeito a metodologia no campo de pesquisa, falaremos como utilizamos essa perspectiva na forma aforista e paródica das filosofias edificantes como ferramenta de olhar para os informantes e a rede de relações instituída em torno do laboratório e da escola. Será dada ênfase nessa publicação aos modos como podem ser, no estilo de bricolagem dos Estudos Culturais das Ciências, a apresentação dos agentes que farão parte da pesquisa. O texto completo dessa narrativa metodológica está em Oliveira (2016), principalmente na parte II – As apalpadelas.

Pesquisar a escola de forma intencionalmente periférica pode ajudar a repensar como fazemos pesquisas. Com alguma dificuldade inicial, aos poucos fomos nos familiarizando com as idiossincrasias e tomando coragem para perguntar acerca das condições, as relações, os hábitos, as autorizações de quem fala e do que se fala. A partir de quais lugares se produzem as condições de possibilidade dos enunciados científicos nos laboratórios do ensino médio? A quem e a que estariam articulados estes enunciados? A quais regras externas e internas eles obedecem? Como funcionam as ambiguidades nas relações e nos posicionamentos?

Trechos do diário de campo. O dia em que estudar a escola do ponto de vista etnográfico entrou no radar. Visita à escola para matricular os filhos:

07h25min (jan.2003) – O porteiro me cumprimenta cordialmente enquanto olha atentamente o carro passar pelo portão de acesso ao colégio. O metrô de superfície “trensurb” faz manobras no final da linha, em frente ao portão, para retornar à estação São Leopoldo e de lá serpentear pelos 32 km de trilhos até a Estação Mercado, centro de Porto Alegre. Um cordão de mata e outro de laranjeiras, bergamoteiras, se antepunham aos prédios centenários, de 4 andares, com alas que abrigam o Colégio São José, um Pensionato e um Asilo.
07h30min – A secretária me conduz pelos corredores amplos, de paredes grossas daquilo que já foi o Sanatório Santa Elisabeth, ao lado da recepção a secretaria, onde vejo uma Irmã trajando hábito cinza-azulado e lenço branco na cabeça, trabalha entre escrivaninhas e papéis e dá a atmosfera santificada do meu imaginário. Chego na sala onde está Irmã Iria Pozebon. Diretora Geral da Escola. Sou recebido com um sorriso e um aperto de mão forte; ela trajava roupas laicas e falava com o tom firme e claro que me acostumei ver nos empresários.
07h35min – Disse-lhe do interesse em matricular meus dois filhos na escola.
07h50min – Caminhamos pela escola, ela ia dizendo: ali é a capela, acolá a secretaria, ao lado a tesouraria, no andar de baixo a biblioteca, no de cima o museu; defronte ao pátio os laboratórios de Química e de Biologia, aqui a sala dos professores, à frente as salas de aula, na outra ala a educação infantil e as salas de 1º e 2º séries.
Quantos anos tem esta escola irmã? Perguntei. Estamos em São Leopoldo desde 1872, com a chegada das 6 primeiras Irmãs vindas de navio da Europa, e aqui neste prédio, desde 1923, ela ia dizendo. E vocês têm registros desta longa trajetória? Perguntava cada vez mais entusiasmado. Temos alguma coisa registrada no livro Poliantéia, mas boa parte dos documentos foi perdida em várias reformas e limpezas nos arquivos da escola, era muito papel que ficava por aí sem utilidade.

Voltei para a Universidade falando e gesticulando sozinho enquanto dirigia. Dizem que é coisa de italiano.

Por que não estudar a escola particular?

E ficaria com isso na cabeça o dia todo, avaliando as possibilidades históricas de estudar uma escola tão longeva, pensando na raridade de utilização dos laboratórios das escolas públicas, pensando nos compromissos morais de um funcionário público com a escola pública, pensando nos conceitos de: especificidade, conexão e articulação, na verdade, já buscando encontrar as justificativas para uma suposta traição ao orientador e a mim mesmo. Onde eu iria encontrar tão rico material para estudos como os que vi no Colégio São José? Quantas escolas públicas eu teria que visitar para ter um estoque de material adequado para os estudos?

O efeito do local, a imponência da arquitetura, a curiosidade e a expectativa em relação às Irmãs Franciscanas, um certo desconcerto em relação à versatilidade laica da Irmã Iria, tiveram um impacto positivo em meus sentidos. A mística, a história e o local exalavam o fetiche inebriante e estimulante dos textos alquímicos, da androginia, do nascimento das coisas nos vapores, nos pensamentos que se articulam através do surgimento de novos fatos é tão mais humano (Roob, 1997, p. 457).

O impacto provocado entre uma preconcepção das irmãs como retratos integrados e fixos na arquitetura do Colégio São José e o estranhamento de não ver quase nada disso, foram os catalisadores que acenderam a vontade pelo estudo. Justamente foi nesta sensação de exotismo e de esoterismo que a etnografia, como ferramenta de estudo, começou a formar-se como possibilidade. Foi um primeiro passo, ainda com influências de uma espécie de autoridade etnometodológica experimental (Latour & Woolgar, 1997, p. 18; Glifford, 1992, p. 149) em direção ao que ser tornaria em alguns meses uma tese.

Se pensarmos que fui ao colégio com a intenção de matricular meus filhos, o estabelecimento do campo de pesquisa pode ser considerado, em boa medida, contingente. Não fosse pelo simples fato de que eu estava o tempo todo a procura de campos de pesquisa e com vários vieses teóricos e metodológicos em mente. Assim, trata-se de contingência, de estratégia, de pragmatismo ou de bricolage? Todas elas, comprimidas em uma linha que podemos nominar de experiência, que assume aqui, suas características de singularidade, de finitude e de ulterioridade, somente passou a ter existência quando entrou na rede de interesses que se estabeleceram para encontrar um encaminhamento apropriado, que servisse como trabalho de campo.

Ora, dar os primeiros passos na senda no Colégio São José, cujos laboratórios de largo trajeto histórico, prestavam-se otimamente à utilização. É preciso admitir que Knorr-Cetina atinou com um ponto importante das relações acadêmicas, quando apresentou suas argumentações acerca da lógica oportunista de manter um relacionamento cauteloso, útil e, por assim dizer, verdadeiro, é o nome do jogo (Geertz, 1992, p. 67). Então, o que fizemos foi tentar um ajuste com toda espécie de recursos, contra recursos e distribuições de poder, com a intenção de sermos bem sucedidos na empreitada.

Para quem está em buscar de um tema e campo de pesquisa, encontrá-los é deveras, um grande alívio. Mas não é, de forma alguma, o fim do caminho!

Fazer contato com as minúcias e as idiossincrasias que circulam um campo de pesquisa pode ser bem traumático. Antes de me embrenhar nos laboratórios, os trabalhos de pesquisa passaram por outros locais. Estive envolvido com pesquisas em atas, livros produzidos pelas irmãs franciscanas, algumas entrevistas informais, inicialmente sem qualquer recurso além da memória, caneta e papel, seguindo de certa forma o que disse Latour & Woolgar (1997, p. 34), penetrei, com relação à metodologia, “às apalpadelas na selva dos fatos, sem possuir mapa ou bússola”. As informações obtidas durante o dia de trabalho foram transcritas - amadoramente - para um caderno que chamei de diário de campo. Nele guardava, supunha eu, informações, impressões, emoções e trechos desconexos de história, e teve o papel de ser o ensaio de registro, na tentativa de um entendimento da organização da escola, dentro de um contexto mais geral.

Dar conta do contexto geral, mostrou-se muito rapidamente uma ilusão. O que fiz foi bem mais modesto, foi descrever como a circulação de interesses, conforme tratado por Latour (2001), funcionou para contar uma história, para um texto, carregada de teorias e interesses vindos de outros contextos. É como disse Veiga-Neto (1996, p. 354),

[...] minhas leituras não fizeram a anatomia dos textos. Minhas leituras foram superficiais. Isso deve ser entendido, certamente, não como “apressadas” ou “não rigorosas”, senão como leituras que são feitas pela superfície em que tais discursos se relacionam com a episteme em que nasceram e em que são pronunciados. Cada texto é um monumento que ocupa um espaço, empurrando para os lados os outros textos[...]

As falas, os textos, as apresentações que serão feitas a seguir são tomadas desta exterioridade à qual se refere Veiga-Neto, sempre negociada e esvaziada da origem e não na sua linearidade e internalidade. O que fiz foi realizar análises fragmentárias e transformáveis utilizando-me de alguns textos, de alguns relatos, de algumas observações seguindo Lê Goff (1985) e Gore (1994), quando dizem que devemos analisar os eventos não como documentos, mas como monumentos fabricados segundo relações de poder que induzem, seduzem, ampliam ou limitam, alinham os interesses ou destroem as possibilidades.

Biblioteca do Colégio São José

Iniciei a pesquisa na biblioteca no, agora, longínquo 4 de fevereiro de 2003. A biblioteca (Ilustração 1) fica atualmente onde fora um porão, um pouco abaixo do nível do solo úmido de São Leopoldo RS. A estrutura arquitetônica sustentada por vigas em arcadas apoiadas em grossas e sólidas paredes, dava ao local uma sensação de construção medieval. Estreei

pela leitura da Poliantéia, primeira referência que me foi apresentada pela atenciosa bibliotecária, quando ela me disse que naquela obra ”estava escrita direitinho a história das Irmãs Franciscanas e a fundação do colégio São José”. Todo o cenário de porão da biblioteca e o livro contando histórias de abnegação, espírito empreendedor e ímpeto jovial de mulheres e homens que construíram sistemas e relações importantes, dava uma estimulante sensação.


Li com interesse juvenil a Poliantéia, obra produzida pela Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã. Enquanto ia sendo apresentada a criação do Colégio São José, à procura de pistas sobre a trajetória do pensamento científico, descobri pouco sobre ciência, algo sobre a história da escola e indicações, quase sensações, acerca de uma possível relação da fé e do fazer, sublimado na frase “Deus proverá”, atribuída como inabalável expressão utilizada por Madre Madalena (Maria Catharina Damen 1787 – 1858) fundadora da congregação em 1835 (Werle, 2002). Madre Madalena, segundo consta da Poliantéia (1947), utilizou a expressão “Deus Proverá” como motivação para seus trabalhos de caridade e como bandeira de fé em situações mais agudas das crises políticas e sociais nas quais esteve presente. No Colégio São José, na sala de reuniões observei um cartaz de 1,5m2 com a imagem de Madre Madalena, onde se lê “Deus cuida”. Há portanto, uma modificação no entendimento: da providência divina como (pro)visor de todas as necessidades para um entendimento, de estar atento, alguém que cuida, que observa.

Os relatos e históricas contadas acerca da congregação, da fundadora, da criação do colégio, revelaram um interessante jogo de contingências que foram produzindo os fatos, entre os quais, a criação do colégio.

Da pesquisa na documentação da escola, senti que estava fazendo um trabalho um tanto desconectado. Do ponto de vista metodológico, os dados que possam ser levantados, só adquirem significado no entrelaçamento com as observações das atividades realizadas no laboratório – pensava eu. A constituição de um entendimento histórico e da utilização destes dados nas agonísticas atuais permitem outras inferências. Somente dessa maneira, refletia eu, seria pertinente retomar a pesquisa pelas normas, atas e outros documentos. Olhando em retrospecto, foi um aprendizado e uma dicisção importante, pois marcou um novo ponto de partida para a fase empírica. Os documentos, nessa perspectiva, teriam algum sentido quando tornarem possíveis alguns entendimentos sobre suas ações concretas, como inscritores, na sua descontinuidade, desqualificados de suas posições privilegiadas de conhecimentos verdadeiros, ou seja, quando perdem suas instâncias privilegiadas de documentos.

Ao perceber isso, me dei conta que estava fazendo um recorte, dando um limite. De resto, estava criando minha metodologia a partir das condições possíveis. Estava fazendo a opção de olhar a escola e o laboratório escolar, no sentido dado por Latour & Woolgar (1997, p. 21):


Cumpre estudar a ciência atual, a que está sendo feita, em meio a toda a controvérsia, de modo a sair definitivamente do conforto intelectual dos historiadores que estão sempre chegando atrasados. Em lugar de estudar as ciências “sancionadas” cabe estudar as ciências abertas e incertas.

A partir do estranhamento de estar naquele porão às voltas com uma literatura um tanto fabulosa, o estudo de documentos foi aparecer no texto, somente a partir da necessidade e do tipo de documento que as contingências da pesquisa solicitaram. Essa foi uma decisão difícil de ser tomada, já que pôs por terra minha motivação primeira, quando na conversa com a Irmã Iria, no início deste capítulo, me entusiasmava uma pesquisa histórico-documental.

Doze de agosto de 2003, marca um novo primeiro dia oficial de pesquisa no Colégio São José, fiquei vagando um pouco pelos corredores vazios em frente às salas de aula do ensino médio e fundamental. Professores e alunos estavam em suas salas, com portas fechadas; pelas janelas amplas podia ver os alunos, as alunas e as professoras em atividades, naquela cena que meus olhos de professor já estão habituados a presenciar; mas havia algo diferente, como se não reconhecesse bem tudo aquilo. A posição de sujeito que pesquisa modifica todo o campo; é como se admirasse algo exótico. Olhei novamente, alguns alunos virados para trás com olhares que oscilavam entre preocupados e distraídos, conversando com os colegas, outros aferrados ao caderno, quase dobrados sobre eles, escreviam de forma lenta, artesanal, com o olhar tão distante que dava a impressão de estarem em viagens extracorpóreas. Outros pareciam estar em toda a parte. Alguns pareciam dedicar-se ao aprendizado do tema proposto pela professora que gesticulava, falava, escrevia... Visto pelo lado de fora, sem o privilégio do som, tive a impressão de estar assistindo a um ensaio, uma tomada para um filme, onde os figurantes representavam papéis, falavam, ouviam, fingiam dançar sem a música. Imagens que sopravam imperfeitas, mescladas por taxionomias e estádios epistemológicos, portanto, coladas a uma preconcepção.

Fachada frontal do Colégio São José, São Leopoldo, RS.

Apressei o passo pelo largo e longo corredor do 2º andar do prédio destinado ao ensino médio, de forma a fugir daquelas imagens que pareciam capturar-me de uma maneira que não queria naquele momento. Minha vontade era sair da escola. Ganhei o corredor que dava acesso à porta principal, de batente alto com 3 metros de altura e 2 metros de largura, encontrei a Irmã Íria, cumprimentou-me sorridente e perguntou-me se estava trabalhando e disse: parece que está tudo certo né? Saí pela porta principal, como que saindo de um labirinto. A branca fachada externa do prédio (Ilustração 2), desbotada de leve, destacava-se das nuvens cinzas do céu, o zéfiro denunciava a chegada do inverno gaúcho, caminhei vagarosamente pelo pátio externo à procura de algo, não sei bem o quê. No pátio, as laranjeiras carregadas de frutos amarelos, pareciam pequenos sóis envoltos nas folhas verde-escuro. A todo o momento perguntava o que estava fazendo ali. Tudo estava calmo, ninguém à vista, a única coisa a ver era a figura colossal do prédio de quatro andares logo à minha frente.

Retornei para a sala dos professores, que estabeleci como uma espécie de porto para qualquer viagem dentro da escola. Encontrei a professora Diná que leciona Biologia para os alunos do primeiro ano do ensino médio e Ciências para as quintas séries (A e B) e sétimas séries (A, B e C) do ensino fundamental. No oitavo mês de gravidez e andando com cuidado, gentilmente me convidou para conhecer suas atividades no clubinho de ciências O clubinho de ciências destinava-se às crianças que ficam em período integral na escola, variam desde a 1ª até a 4ª séries do ensino fundamental. Alguns já alfabetizados e outros ainda em fase de alfabetização. Levou-me, depois, ao museu que estava organizando, às hortas que cultivava com os alunos e às suas aulas – na maioria, executadas no laboratório.

Nas prateleiras do laboratório, os vidros contendo cobras, aranhas, fetos, esqueletos e corpos humanos feitos de polímeros sintéticos desmontáveis, maquetes se desmontando, vasos contendo plantas em germinação, aquário que, em vez de peixes, continha minhocas, davam àquele espaço uma instituição de laboratório de Biologia, onde se faziam coisas acontecerem. Um dia (21/08/2003), após algumas experiências do clubinho de ciências e muitos hóóóóos! Puxas! Que massas! Perguntas e comentários dos alunos; a professora Diná me disse:


[...] é uma forma de trabalhar né, um jeito que tu faz de o aluno ver e aprender o que é importante ele aprender e fazer aquilo que a gente ta aprendendo, só da boca pra fora não dá, aqui tem experiência [...] e aí tu vai mostrando, e aí eles não esquecem mais.

Perguntei se ela se achava uma cientista.


Sim! Eu pra mim sim [risos dela]! Ciência é a comunicação do saber [...] do meu jeito eu sou... [pausa]. Eu já fiz ciência pura sabe? Mas não existe ciência pura sem conversação, sem união, sem autoconhecimento [...] eu já trabalhei em cooperativas [...] mas eu não conseguia ficar distante, porque a ciência não é isso, a ciência não é para ficar distante, ela tem que aproximar né!? O indivíduo, para aplicar esse conhecimento! Para usar esse conhecimento em alguma coisa. [...] a minha decepção foi quando eu descobri esse outro lado do cientista, é próprio de mim, uma questão de justiça minha, eu sempre quis saber como era esse outro lado do cientista, por que aquele cientista que ganha prêmios, o que é que ele fez para chegar onde chegou? Eu estudei vários cientistas [não entendi os nomes] mas eu não gostava desse outro lado, assim, da falta de ética, do roubo, de tentar copiar dos outros aquilo que não era dele [...]. Eu não gosto porque... acontece até hoje, se você não for esperto eles estão te passando a perna [...].

Capturei, nessas falas alguma percepção do pano de fundo da purificação da epistemologia científica, desdobrado astutamente e posto por trás de nossa incursão ao laboratório escolar. Enfim, alguma percepção emergia dessa metodologia às apalpadelas.

Depois fui convidado a participar de aulas onde se estavam preparando trabalhos para a feira de ciências,


Amanhã, se tu quiseres acompanhar, eu tenho aula com o primeiro ano [do ensino médio], aí tu vais ver a pesquisa que eles estão fazendo em água, e tu vais conhecer... Ahãã! A primeira pesquisa científica que eu comecei aqui no colégio, com pesquisa de campo [...] então nós estamos vendo a solução de problemas [...] uma coisa é descobrir o problema, outra é solucionar. [...] então, os melhores trabalhos vão para a feira [de ciências do colégio] e os outros serão expostos [...].

A professora Diná, ao falar um pouco de si, me conduziu à porta do labirinto, fez as apresentações das conexões entre ciência, conhecimento e razão, do método científico, das premiações, dos fios que conectam vários interesses pelos quais a ciência atua na escola.

Foi também a professora Diná quem me apresentou à professora Rosalyn. Esta leciona Química para os primeiros anos (turmas A, B e C) e segundo ano (turma A) do ensino médio. É responsável, também, pela preparação das aulas práticas de Química. Trabalha 18 horas por semana na escola, seis em atividades no laboratório e as doze outras, com aulas. Neta de proprietário de indústria química,

Meu avô tinha uma Indústria Química, [...] de produtos de couro [...], eu adorava ficar lá com ele, mexendo naqueles vidros e brincando de fazer coisas [...].

Estudou no Colégio São José até a 8ª série, depois fez curso técnico de Química no Colégio Liberato Salzano Vieira da Cunha, em Novo Hamburgo,


Era muito puxado, 4 anos em turno integral de segunda a sábado, com 1 ano de estágio, dos quatro anos, três fiquei no laboratório. [...] a Química já estava pronta, do meu avô.

Formada em Química (licenciatura) pela PUCRS e em Engenharia Civil pela UNISINOS, “procurei a Química na Engenhara Civil, mas era muito fraca”. Em 1990 foi convidada pela Irmã Leda Inês Rabuscke, Diretora Pedagógica na época (Werle, 2002), para reativar o curso científico no colégio.


Eu estou aqui desde 90 [1990] eu iniciei quando iniciou o curso científico aqui na escola, que foi em 90, reiniciou, por que antes só existia o normal, ai eu entrei, aí nós começamos [...]. Desde que eu cheguei, já fui ajeitando alguma coisa prática, como você vai explicar pro aluno o que é uma solução supersaturada? Só na prática! [...] talvez a gente queira que o mundo seja mais mágico, por isso gosta da explosão dos químicos [...] Bah! Eu me seguro nisso, o objetivo é integrar todos [...] tu só tens liberdade se tu conheces!

Fiquei pensando no que Latour (2002a) disse acerca da estratificação da tecnologia como meio, a moralidade e a ética, como fim; quando se está operando em um discurso regido pela epistemologia da ciência, e do quanto essa dicotomia é problemática quando se observam as atividades diretamente no campo.

A professora Rosalyn divide suas funções com a professora Isadora, numa parceria que funciona com conexões, conversas e acertos que ocorrem, segundo pude acompanhar, rapidamente pelos corredores, na sala dos professores onde, entre os vários assuntos sobre o que conversam, aparecem pequenos trechos, fragmentos acerca das atividades que dividem entre si.


Eu me encarrego das aulas práticas e exercícios e a Isadora faz as provas [...] estamos tão conectadas que dá certo [...].

O sucesso, para mim, um observador externo, parecia sustentado por um minúsculo e frágil fio que transmitia códigos de articulação e parecia sempre tensionado no limite de rebentar. Os códigos, os enunciados não funcionavam da mesma maneira para todas a professoras. Não verifiquei algo parecido, por exemplo, entre a professora Diná e a professora Lucíula, ambas da Biologia. Ou da professora Rosalyn com outros professores atuando da mesma maneira, com a mesma articulação que envolvesse o laboratório, aulas teóricas, práticas e preparação do material.

Comecei a entender que de alguma maneira as atividades obedeciam a códigos locais, articulados a interesses e afinidades mais do que aos elementos institucionalizados, embora estes estivessem presentes, não apenas como preocupação nas reuniões pedagógicas, das quais não participei, mas sobre as quais tive conhecimento, por meio dos livros didáticos, que buscam se adequar aos esquemas da LDB. De maneira preliminar, é possível dizer que vale olhar para as atividades práticas no sentido mais específico. Mesmo porque o descompasso entre o que se diz e o que se faz dificulta uma pesquisa baseada somente em entrevistas, ou no que dizem as professoras, mesmo quando há programas norteadores bem estruturados. (Arruda, 2001; Lemberger et al, 1999).

A professora Isadora ingressou no Colégio em 2000, leciona Química para os segundos anos (turmas B e C) e para os terceiros anos (turmas A e B), cumpre treze horas de atividades na escola. Tem uma trajetória de 25 anos como professora de Química.


Eu gostava de Química e na época em que tinha idade para o vestibular estavam inaugurando o polo petroquímico, aí eu decidi fazer pra Química. Eu achei que podia ser uma possibilidade, fiz vestibular para Eng. Química na UFRGS,[...] não passei. Fiz vestibular para Química na PUCRS, passei. [...] Fiz licenciatura curta em matemática e ciências, depois licenciatura plena em Química e por fim bacharelado. [...] Eu estava bem dentro do curso [...] fui monitora durante muitos anos [...] eu era monitora de inorgânica II, [...] então tudo que o professor dava de prática era a gente que preparava, os materiais, ele dava o roteiro e a gente preparava as soluções... se virava.[...] Aquilo era uma segunda faculdade, com certeza. [...] Eu comecei a fazer um mestrado em engenharia metalúrgica na UFRGS, em corrosão, o trabalho final ia ser sobre corrosão [...] mas aí, com dois anos de curso [...] como é que fala? Eu... tranquei.

A professora Isadora seguiu contando sua trajetória. Ouvindo-a ficava cada vez mais difícil estabelecer o que Meihy (1996, p. 16) chama de modalidades de história oral. A todo instante as preocupações com a trajetória pessoal confundiam-se com o tema Ciências de nossa entrevista e com as tradições mais coletivas de nossos mitos acerca da nossa sociedade racional, do conhecimento como liberdade ou da adolescência como carência. A própria emergência dos estereótipos nos discursos, meu e dela, que podem ser fatiados em sociogramas (Robin, 1986), denuncia uma certa racionalidade gráfica, um alfabetismo científico (Gómez, 2001). Longe de significar melhor transparência, remete, ao contrário, a um mergulho no discurso que obedece a um certo ritual enunciativo, institucional, social e teórico (Pivatto, 2000, Larrosa, 1994), que não nos deixa agir sós.


Aí, me formei e fui convidada para trabalhar lá dentro da universidade, como professora substituta, com contrato para seis meses, [...] inicialmente eram aulas de laboratório, de Química Qualitativa [...], e no final de ano eles me contrataram e fui professora por doze anos, no curso de Eng. Química e no curso de Ciências, com Físico-Química, era a minha área, a Físico-Química. [...] Esqueci de comentar que quando me formei eu já trabalhava no Estado, [...] trabalhei quinze anos no Estado, nesta ocasião eu trabalhava na PUC e no Estado.[...] Meu marido é Engenheiro em uma multinacional [...] Para ficar com os meus filhos eu pedi demissão da PUC, [...] depois fui contratada na FEEVALE para trabalhar com o ensino médio, trabalhei quatro anos. No Estado eu... Entrei no PDV, e saí voluntariamente. [...] era muito ruim o clima, o Governo interferia nas escolas, o salário cada vez mais... Eu sempre fui grevista, então eu já vinha de muitas e muitas greves e nesta ocasião as coisas pioraram muito... cada vez nós éramos mais ahããã! menosprezados... heeee, eu, graças a Deus, não precisava! Pedi demissão! [...] Atualmente eu trabalho no Lassale de Canoas e aqui.

A professora Isadora ingressou no Colégio São José, inicialmente lecionando em um curso preparatório para vestibular em 1999,


Aí em 2000, a Bethi [Diretora Pedagógica], me perguntou se eu teria interesse em dar aula no colégio, Eu disse que sim! De todas as escolas que eu trabalhei, de ensino médio, essa é a melhor!

Perguntei se era pelas facilidades de relacionamento.


É, pela facilidade de relacionamento, mas mais pela filosofia, que eu acho que é a filosofia que mais se adecua[1] à minha, é uma filosofia que cuida da pessoa como cidadão e entende que cuidar da pessoa como cidadão, não é deixar que ela faça tudo que ele bem entende, é uma filosofia que exige, que não é a tendência de passar a mão na cabeça do aluno. [...] é dar para o adolescente, educação, limites, conteúdo! Os adolescentes estão aí para que? Para saber seus limites, saber conviver em sociedade, saber que a minha liberdade começa onde termina a do outro. [...] O conhecimento leva a liberdade, em todos os sentidos, ensinar Química é ensinar uma coisa bonita.

Essas foram as três informantes que mais contribuíram para o trabalho, atuando como professoras. As perspectivas de cada uma foram obtidas de formas distintas, com a professora Diná ocorreu através da gravação de uma conversa informal após sua aula, em agosto de 2003 e não foi planejada como uma entrevista, o que não constituiu ineditismo nem tampouco fugimos de um cenário particular, diverso daquele em que ocorreram os eventos que a professora Diná me contou. Já a professora Rosalyn, não aceitou que a entrevista, marcada para 14 de julho de 2004, fosse gravada. Preparei, previamente, um questionário, para que pudesse apreender o melhor possível da nossa conversa. A pauta prévia não diferiu da entrevista com a professora Diná, não estive neutro em nenhum dos casos: havia um projeto, interesses, teorias sempre presentes. Ademais, e talvez o mais interessante, é que das vinte perguntas que preparei, elegi oito para a entrevista e somente utilizei as duas primeiras[2] que me soaram, no momento do evento, com significados distintos daqueles com os quais as redigi e, tomando um rumo próprio no decorrer da conversa. Ora, as técnicas, o planejamento, as concepções de escola, de laboratório só funcionam bem como fatores sociais e artefatos humanos quando bem protegidas e longe dos eventos em que são produzidos. Atravessado por essas experiências, não preparei questões para a professora Isadora, embora, e talvez porquê, já as tivesse prontas na memória. Ainda que tenha permitido a gravação da conversa, a negociação para que aceitasse a entrevista foi mais complexa[3] e uma certa formalidade esteve sempre presente, em particular no início, quando suas lembranças pareciam passar por uma bateria de asceses, em busca de esquemas coerentes de narração.

Não houve, portanto, um domínio metodológico acerca das entrevistas, pelo menos não dentro do modelo homo faber, mas bifurcações, eventos circunstanciais e sutilezas que alteraram as trajetórias e as histórias, e continuam sendo possuídas, e modificadas neste exato momento em que as escrevo e pergunto: do que falavam as professoras? De agonísticas, em que o herói aprisiona em si o conhecimento, única arma capaz de livrar a todos da tirania, da ignorância e da servidão? Falavam do frontagir dos cientistas ou dos professores? Falavam dos acontecimentos ou das repercussões? De suas vidas ou de padrões e valores de uma memória coletiva específica do ser professora, instituída em um grupo de atuantes e eventos ad hoc, que como um ritual, em um momento de perigo, eram juntados às pressas na memória para dar conta da entrevista que, faziam-nas buscar histórias como se fossem seus passados? Como acreditar que a fala das professoras, das administradoras, dos funcionários e dos alunos é realmente o trabalho de produção do conhecimento escolar? Como seria possível manter distância suficiente para lançar um olhar verdadeiramente novo acerca do que é feito nos laboratórios?

As transcrições das falas apresentadas acima foram longas, uma tentativa de possibilitar intervenções maiores das informantes, sobretudo neste item, em que tratamos de apresentações, este meio termo entre a presença objetiva do ser sociológico e a busca subjetiva da autobiografia. Quase todo o tempo, buscávamos uma aproximação, mas havia uma separação entre pesquisador e informante em que cada qual buscava seguir suas vidas. Nossos contatos eram a própria essência dos eventos que hibridizavam interesses em comum, surgiam das necessidades que estavam sendo provocadas pela minha presença no campo. Mesmo sendo uma situação um tanto incômoda, ela é produtiva do ponto de vista metodológico, quando olhada retrospectivamente; justamente porque desaloja a diferença, faz fluir outros territórios.

Mas para compreender algo daquela escola, daquelas pessoas, seus costumes, suas maneiras e que elas também não me entendiam. Uma observação participante (Bosi, 1987), embora cada vez menos provável, devido à distância cultural e aos interesses em jogo, mostrou-se relativamente presente em muitos momentos. Menos como parcerias e mais como sistemas agonísticos quando colaborei na preparação de aulas práticas. Quando, num instante, me vi em um campo agonístico, as diferenças de minha própria condição, dos meus próprios valores começaram a mostrar contornos mais nítidos.

Cabe ainda apresentar melhor como fui tecendo a metodologia às apalpadelas trazendo à presença o laboratório, os alunos, os detalhes da negociação com o campo de pesquisa. Mas, devido ao espaço reduzido aqui, convido a olhar essas outras passagens no texto original. Ver Oliveira (2016).

[1] Embora esta palavra não seja dicionarizada ou conjugável a partir do verbo adequar, optei por mantê-la, devido ao seu uso comum e, pensando no que disse Latour (2001, p. 318), embaixo, na vida useira, na língua vulgar, as regras se confundem, são redistribuídas e remexidas interminavelmente. De fato. Se o mundo acadêmico quer que a multidão faça parte de suas políticas, vai precisar se acostumar com a desordem que isso produz. [2] As questões: 1) Tenho acompanhado seu trabalho aqui na escola, vejo seu envolvimento com a Química, com a APM (Associação de Pais e Mestres) e está sempre ativada. Conta-me um pouco como você transita entre estes fazeres. 2) Conte-me um pouco de como você começou sua carreira. [3] É pertinente dizer que na data da entrevista, 16/07/2004, eu já havia dado à Isadora algumas transcrições das gravações de suas aulas e ela já havia questionado se eu as publicaria da maneira como estavam. “é porque na aula a gente vai falando, mas quando passa para o papel, sai umas coisas ...”

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