Por Everton José Galbetti
Introdução
Gostaria de começar minha escrita com uma breve apresentação sobre minhas origens e formação. Sou natural do município de Álvares Machado, uma pequena cidade do interior do estado de São Paulo. Vivi em uma propriedade rural até quase treze anos de idade, quando me mudei para a cidade vizinha Presidente Prudente. Durante o ensino médio, tive contato com a disciplina de Química, e já no primeiro ano estava decidido a cursar Licenciatura em Química, pois possuía o objetivo de ser professor. No ano de 2008, iniciei o curso de Licenciatura em Química na Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE). No segundo semestre do ano de 2010, iniciei a carreira de docente como eventual em escolas públicas de Presidente Prudente e região. Substituía aulas dos professores que faltavam, o que me possibilitou ser docente de diversas disciplinas, algumas das quais sem qualquer relação com a minha formação, até que, no ano de 2014, após fazer o concurso para o magistério do estado de São Paulo, ingressei como professor titular de Química em uma escola de Presidente Prudente. Hoje resido e dou aula em uma escola de Regente Feijó – SP.
No ano de 2017, através de uma publicação no Facebook, fiquei sabendo da abertura para inscrição no Mestrado Profissional no Ensino de Química (PROFQUI). Fui selecionado para o programa e, na primeira aula, algo despertou meu interesse para o campo dos Estudos Culturais das Ciências e Educação: na aula do professor Dr. Moisés Alves de Oliveira, que posteriormente se tornou meu orientador, me foi apresentado o livro “Documentos de Identidade” (SILVA, 1999), um pequeno exemplar, mas carregado de informações que me fizeram optar por seguir os caminhos da pesquisa no campo dos Estudos Culturais.
Após o primeiro contato com os Estudos Culturais e a leitura do livro supracitado, comecei a gostar e me aprofundar, aos poucos, no assunto buscando novas leituras. Foi exatamente nessa busca que me deparei com um dos meus maiores problemas – O que pesquisar? Onde pesquisar? Acho que todo mundo quando ingressa no mestrado já passou ou irá passar por essa questão. Era uma questão que me perturbava dia após dia, principalmente, porque havia mais fatores a serem levados em conta.
O nível de mestrado profissional, além de uma dissertação, tem como uma de suas premissas a produção de um Produto Educacional. Segundo Moreira (2004), o currículo de um mestrado profissional deverá contar com a
“elaboração de um trabalho final de pesquisa profissional, aplicada, descrevendo o desenvolvimento de processos ou produtos de natureza educacional, visando à melhoria do ensino na área específica, sugerindo-se fortemente que, em forma e conteúdo, este trabalho se constitua em material que possa ser utilizado por outros profissionais (p. 134)”.
Essa dúvida perdurou pelos praticamente três primeiros meses do mestrado, quando, um dia, durante o intervalo de uma das aulas, me encontrava sentado pelos corredores da UEL, e o meu orientador chega com uma proposta para a pesquisa – “Everton, vamos fazer a sua pesquisa de mestrado dentro de uma prisão?!”. Sem muito pensar, aceito de pronto a proposta. Nós sabíamos que, dentro dos presídios, são produzidas grandes quantidades de coisas a partir daquilo que os encarcerados têm nas mãos, e o nosso propósito com a pesquisa seria investigar as formas como ocorrem a produção e a utilização da química dentro desses espaços de privação material.
A decisão por trabalhar nesse local, interditado e controlado por um poder disciplinar (FOUCAULT, 2014), ocorreu com o propósito de nos tornamos propagadores das vozes emitidas dentro deste espaço. A proposta de pesquisar as formas de produção de ciências dentro de uma penitenciária emerge a partir de um de um estado de inquietação com a questão “É possível produzir algo dentro de uma penitenciária, ou melhor, dentro de um cubículo?” de onde emergiam outras questões, como “O que se produz? Como se produz? E para que fins são produzidos?”.
A partir da decisão de fazer uma pesquisa dentro de uma penitenciária, possuíamos agora a nossa questão de pesquisa, no entanto surgia, naquele momento, uma segunda questão perturbadora: “Como adentrar dentro de uma penitenciária para fazer a pesquisa?”. Sabíamos que não seria fácil conseguir a autorização para a realização de uma pesquisa dentro de uma penitenciária, e as primeiras tentativas se provaram frustrantes. Como era residente próximo à cidade de Presidente Prudente – SP, achei que seria mais cômodo realizar a pesquisa em uma das penitenciárias, que não são poucas, dessa região. Mas, após várias tentativas de contato, quando finalmente consegui, mostrou-se frustrante. Devido aos trâmites, seriam necessários ao menos seis meses para obter uma resposta se seria possível a realização da pesquisa, um período muito longo para esperar quando se trata de um mestrado. Nesse momento, eu achei que teria que desistir e partir para outra possibilidade.
Sabendo da minha dificuldade em conseguir o local para a realização da pesquisa, o meu orientador colocou-me em contato com o chefe de segurança da Penitenciária Estadual de Londrina II – PEL II, que fica localizada na Rodovia João Alves da Rocha Loures, 5925, lote 127, gleba Ribeirão Cambé – Londrina – Paraná, operacionalizada desde 26 de abril do ano de 2007. A PEL II se encaixou perfeitamente como nosso campo de pesquisa, por se tratar de uma penitenciária em potencial, uma das maiores do estado do Paraná e acesso menos burocratizado. Nesse local, já havia sido realizada uma pesquisa por Fernandes (2017), sobre o ensino de estatística. Esse pesquisador, por já ser nosso conhecido, facilitou o acesso à PEL II. Fernandes foi um importante mediador e nos auxiliou com todos os trâmites e processos burocráticos para que pudéssemos adentrar a penitenciária. Assim, ele nos acompanhou durante toda a pesquisa, desde a aprovação da papelada necessária para que pudéssemos obter todas as autorizações para a realização do nosso trabalho de campo até a escolha e liberação dos detentos para participarem da pesquisa. Com isso, conseguimos poupar uma grande quantidade de trabalho e tempo, pois com um mediador entre nós e a penitenciária, ficaram muito mais ágeis os processos de aprovação e liberação do local.
O nosso campo de pesquisa, no caso, a Penitenciária Estadual de Londrina II, possui uma capacidade física para 928 detentos; são 144 celas coletivas para 6 detentos, 96 celas individuais, 12 solários, 5 salas de aula, 6 oficinas e 12 quartos para visita íntima, segundo a Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária (2019). Segundo o Departamento Penitenciário do estado do Paraná (Depen).
Figura 1: Penitenciária Estadual de Londrina II:
Fonte: Depen.
Adentramos a PEL II pela primeira vez no dia 13 de julho de 2018, após o trâmite de alguns meses, algumas análises e várias negociações empreendidas entre nós e Fernandes, para entregarmos uma carta de apresentação da pesquisa. Foi essa a primeira vez que adentrei um espaço prisional; nunca havia passado nem perto de uma penitenciária, salvo as que eu via na beira das rodovias na região onde eu morava. Depois de toda papelada, projetos de pesquisa, autorizações, que foram magistralmente concedidas em prazos curtíssimos, finalmente entregamos um cronograma de pesquisa de campo, algo que elaboramos de forma muito singela, pois não queríamos nos sentir subordinados em realizar nada de forma a obter algum tipo de resposta a priori, mas, sim, que se abrissem novas possibilidades e potencialidades dentro de um local interditado, que os nossos atores encontrassem em nós a oportunidade de externalizar suas experiências, suas produções, suas ciências, pois queríamos não ser algo mais que os interditasse, mas pensávamos na possibilidade de que os atores tivessem suas vozes propagadas (LATOUR, 2012).
Finalizados todos os trâmites de aprovação da pesquisa, teríamos que decidir a quantidade de detentos com a qual iríamos trabalhar; assim, ao final, foi aceita a sugestão de Fernandes, que estava colaborando com a nossa pesquisa e já possuía conhecimento e experiência com a investigação no espaço prisional, o que ainda não tínhamos: ficou decidido que iríamos realizar a pesquisa com algo entre sete e dez detentos, que deveriam ser escolhidos e indicados pela equipe da própria unidade prisional.
Após leituras, conversações e negociações, optamos pela realização de uma pesquisa etnográfica e, a partir desse pressuposto, nos propusemos a deixar os atores agirem, arregimentando novos aliados, sendo nós mesmos arregimentados por eles durante esse processo, mas sempre atentos às vozes, aos gestos e aos corpos, dos agentes humanos e não humanos que participavam da construção das ciências dentro dos cubículos (LATOUR, 2000; 2001; 2012). De acordo com Geertz (2008), “os antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias”, pois é nas aldeias “que o repertório de conceitos gerais das ciências sociais — como integração, racionalização, símbolo, ideologia, ethos, revolução, visão de mundo, sagrado, cultura — se entrelaçam” (PEIRANO, 1995) para a construção de uma descrição minuciosa do trabalho em campo (GEERTZ, 2008).
Na nossa forma de pesquisa, objetivamos possibilitar a fala aos que se encontravam interditados no espaço penitenciário, partindo de uma análise mais cultural deste espaço (HOGGART, 1978; LEWIS, 2002; COMBESSIE, 2001; LOURENÇO; ONOFRE, 2011; LATOUR, 2001), seguindo com a intenção de criar condições para que os detentos pudessem emergir como vozes singulares (FOUCAULT, 1979).
De acordo com Silveira (2002), “dar a palavra não é... uma lição tão singela de ser levado a cabo, já que essa ‘palavra’ só passa existir... quando ultrapassar, de algumas maneiras, as restrições que pesam sobre a enunciação de discursos naquele momento, naquele lugar... (p. 66)”. Com a propagação dos enunciados produzidos dentro de um espaço interditado, ultrapassamos algumas fronteiras das disciplinas, ajudando a espalhar as construções que se dão a partir de poucos materiais e processos de arregimentação de aliados (LATOUR & WOOLGAR, 1997), dentro de um jogo de negociações para a produção de uma ciência dos cubículos.
O local da realização da nossa pesquisa durante os encontros com os detentos da PEL II se deu na sala de eventos da própria penitenciária (imagens abaixo), que fica em um anexo constituído pela sala dos professores, biblioteca e banheiro.
Figura 2: local de pesquisa.
Fonte: (GALBETTI, 2019).
Figura 3: local da pesquisa.
Fonte: o autor.
Na próxima imagem é possível ver como era o local de realização da pesquisa e alguns dos detentos participantes. Gostaria de chamar a atenção para a cadeira que se encontra pendurada na parede da sala, ela está fixada ali através de uma das “químicas” que eles produziam dentro dos cubículos.
Figura 4: local da pesquisa.
Fonte: o autor.
Já que entramos no assunto das ciências que podem ser produzidas dentro dos cubículos, partimos para um campo de pesquisa etnográfica sem saber ainda o que encontraríamos lá, desta forma, a pesquisa de mestrado dentro de uma penitenciária começou sem estipular, a priori, nenhum tipo de pressuposto, mesmo assim, almejávamos chegar a alguns lugares e lá dentro nos deparamos com uma quantidade enorme de criatividade, pesquisa e ciências.
Após um primeiro encontro com os detentos da PEL II, sabíamos para onde a pesquisa caminharia, e tudo começou a fluir, afinal de contas, estávamos ali para fazer uma etnografia na penitenciária, onde queríamos, ao mesmo tempo, ser arregimentados nos processos da pesquisa, como atores. Quando nos deparamos com cola de sabão e de macarrão produzida dentro dos cubículos, soubemos que havíamos encontrado um fio para seguir.
A cola é uma peça fundamental para “grudar” duas formas de convivência aparentemente impossíveis nos cubículos de aproximadamente 18 m2, nos quais habitam normalmente seis a sete detentos. A partir da cola, descobrimos que eles faziam o carrapato, que, parafraseando (GALBETTI, 2019), seria “um parafuso ou tiras de tecido que colamos na parede com a cola, e deixamos de dois a três dias para secar. Depois é só amarrar as cordas e passar a cortina que fecha as camas, banheiro e faz o varal”.
Descobrimos que a cola era produzida de duas formas dentro da penitenciária: a primeira, através da utilização do macarrão (ver imagens abaixo).
Figura 5: macarrão utilizado.
Fonte: o autor
Figura 6: cola produzida.
Fonte: o autor.
Dentro da sala de eventos, fizemos uma “experimentação” com a cola de macarrão, fazendo um carrapato com o qual prendemos um banco de plástico na parede (imagem abaixo).
Figura 7: aplicação da cola.
Fonte: o autor.
A segunda forma de produzir cola era utilizando o sabão em barra, fornecido pela própria penitenciária (imagens abaixo).
Figura 8: produção com sabão.
Fonte: o autor.
Figura 9: aplicação da cola.
Fonte: o autor.
Ao final da pesquisa, desenvolvemos um livreto onde relatávamos, em conjunto com os detentos da PEL II participantes da pesquisa, as formas de produção da cola e alguns conceitos químicos que poderiam ser propagados através dessa ciência contingenciada produzida dentro dos cubículos.
A minha pesquisa de mestrado, através das orientações magistrais do Professor Doutor Moisés Alves de Oliveira, me trouxe a oportunidade de ir a lugares nos quais nunca havia entrado e consequentemente presenciar uma ciência que nem imaginava que existia, uma ciência cheia de contingências, restrições mas que, mesmo assim, se desvencilha das fronteiras a ela impostas e emerge dentro dos cubículos de uma penitenciária. Para quem quiser conhecer uma pouco mais da minha pesquisa e dessa ciência, convido a ler minha dissertação de mestrado (GALBETTI, 2019).
Referências
COMBESSIE, P. Sociologie de la prison. Paris: Éditions la Decouverte, 2001. 128 p.
FERNANDES, L. A. Um estudo sobre o ensino de estatística nas prisões. 2017. Dissertação de Mestrado. Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. v. 4.
____. Vigiar e Punir. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
GALBETTI, E. J. A produção da cola no espaço prisional: como são construídos saberes químicos dentro dos cubículos. 2019. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Londrina.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. 13. reimpr. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
HOGGART, R. An Idea and its Servants: UNESCO from within. Nova Iorque: Oxford University Press, 1978.
LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: UNESP, 2000.
____. Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos. Bauru: EDUSC, 2001.
____. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru: Edusc, 2002.
____. Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Bauru: Edusc, 2012.
LATOUR, B. WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.
LEWIS, J. Cultural Studies: The Basics. Londres: Sage, 2002.
LOURENÇO, A. S; ONOFRE, E. M. C. O espaço da prisão e suas práticas educativas: enfoques e perspectivas contemporâneas. SciELO-EdUFSCar, 2011.
MOREIRA, M. A. O mestrado (profissional) em ensino. Revista Brasileira de Pós-Graduação, v. 1, n. 1, p.131-142, 2004.
PEIRANO, M. A favor da etnografia. 1995.
SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. In: Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 1999.
SILVEIRA, R. M. H. ‘Olha quem está falando agora!’ A escuta das vozes na educação. In: COSTA, M. V. Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação, v. 2, p. 61-83, 2002.
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