Por Adalberto Ferdnando Inocêncio
Resumo
No recorte de investigação aqui apresentado, busco acentuar contornos de algumas possibilidades oferecidas pelo método da cartografia. Enfatizando que não há um caminho metodológico prêt-à-porter no traçado cartográfico, escrutinei seis pistas, de modo que, na organização do presente manuscrito, elas foram comentadas, buscando enfatizar de que modos orientaram o processo de construção do corpus analítico. Com isso, espero contribuir e endossar as investigações que optam pelo método cartográfico nas pesquisas que envolvem produção de subjetividade.
Palavras-chave: pistas; cartógrafo; filosofia da diferença.
Introdução
O presente artigo é resultado de uma tese de doutoramento que pretendeu investigar de quais maneiras a proliferação discursiva da crise ambiental que emergiu nas últimas décadas se relaciona com a construção das subjetividades nas sociedades ocidentais hodiernas. Por meio do olhar teórico proporcionado pela filosofia da diferença, visou-se cartografar modos pelos quais sujeitos constroem, para si, territórios outros, entendidos como formas de vida não “cristalizadas”, ou modalizadas pelos padrões “engessados” que nos persuadem e são orientados pela macropolítica dominante. No recorte aqui apresentado, contudo, em vez de priorizar o objeto da investigação, deter-me-ei em algumas considerações de ordem metodológica, buscando acentuar contornos de algumas possibilidades oferecidas pela cartografia[1].
Uma consideração inaugural, que talvez sirva de alerta aos possíveis leitores/as, é a de que não há um caminho metodológico pronto e prêt-à-porter no traçado cartográfico. Na perspectiva das filosofias da diferença, ou mesmo num escopo mais amplo, como o das pesquisas pós-críticas, Larrosa argumenta que, ao se entrar no jogo que consiste em elaborar as bases de um método, torna-se preciso deslocar o sentido comumente atribuído a esta terminologia, expandindo-o a “uma certa forma de interrogação e um conjunto de estratégias analíticas de descrição” (LARROSA, 2011, p. 37). Em outras palavras, se você, acadêmico ou não, considera adentrar-se no universo da cartografia buscando encontrar “palavras de ordem”, algo que se pareça com um manual ou um receituário, fica o alerta: talvez a cartografia não seja para você!
Em vez de regras e protocolos, o método cartográfico está mais próximo da composição de pistas[2], que, em conjunto, contribuirão para a construção do diagrama que será composto e, em seguida, analisado. O instrumental da cartografia resguarda relações com o que Foucault declarara certa vez sobre sua obra funcionar como uma caixa de ferramentas; ou com o que Deleuze declarara sobre o que é uma aula, sobre esta não ter como objetivo ser entendida, mas experimentada, uma vez que é matéria em movimento.
Deste modo, essa linha ou perspectiva de construção metodológica, situa-se muito distante dos territórios mapeados por bases metodológicas modernas, como a Análise de Conteúdo, a Análise Discursiva[3] e a Análise Textual Discursiva. Tais bases repousam em correntes de pensamento estruturalistas, isto é, que acreditam representar objetos preexistentes e, às vezes, até mesmo criar categorias prévias à imersão no trabalho de campo.
A presente textualidade está (des)organizada em pistas que orientaram uma investigação já realizada. Faço uma brincadeira com o termo entre parêntesis, uma vez que a ordem apresentada neste texto serviu para o trajeto de investigação que percorri durante minha pesquisa. Deste modo, a ordem das pistas apresentadas não necessariamente deve ser encarada como um “passo a passo”. Há, inclusive, pistas presentes nos dois volumes, supracitados em nota, não contempladas aqui e outras aglutinadas. Adianto que será a atenção ao trajeto o critério que melhor indicará quais pistas servirão em cada processo investigativo. O traçar da cartografia é móvel e flexível, mas, por tais atribuições, como busco mostrar na sequência, não se deve entender que se trata de um método menos rigoroso. Muito pelo contrário...
Neste ensaio, escrutinei seis pistas[4]. Comentarei em que consiste cada uma delas e como orientaram o processo de construção do corpus analítico da tese de doutoramento, referida anteriormente.
Também ressalto que, nesta perspectiva de investigação, é preferível utilizar “produção de dados” e não “coleta de dados”. Como estabelecem Barros e Kastrup (2015, p. 59), o “objeto-processo requer uma pesquisa igualmente processual e a processualidade está presente em todos os momentos”, isto é, tanto na produção quanto na análise e discussão dos dados. Assim, tem-se um caminho de pesquisa não conivente aos paradigmas ou ethos da ciência moderna, para a qual as etapas de pesquisa constituem-se em séries sucessivas de passos que sucedem sem se separar um do outro.
Pista 1. Cartografar é construir um diagrama/território
Trabalhar com a cartografia implica elaborar um diagrama/território, esboçado pela proposição de coordenadas capazes de acoplar os complexos de subjetivação-desubjetivação. Um caso hipotético capaz de exemplificar o que estaria situado à distância do que propõe o movimento cartográfico pode ser descrito da seguinte forma: um/a acadêmico/a deseja estudar as relações que se estabelecem em uma determinada instituição, que considerarei, aqui, como sendo uma escola pública. O/a acadêmico/a “vai a campo” munido de questionários e um caderno de campo. Entrevista professores/as, alunos/as e anota o que considera importante no caderno. Transcreve as entrevistas e as informações que julga “coletar” da realidade, faz tabelas ou mesmo gráficos de frequência relativa sobre “uma realidade” a qual ele/ela observa como estrangeiro/a, à parte da realidade existencial que não o/a implica e, posteriormente, cria categorias analíticas para os dados “coletados”.
A descrição acima atina-se a um movimento bastante familiar nas pesquisas acadêmicas, de modo que enfatizo as expressões colocadas entre aspas. Os problemas não residem na pesquisa cartográfica à instituição, ou aos sujeitos que a habitam, propriamente ditos (o que pode acontecer, desde que certos cuidados e critérios sejam tomados), mas na maneira com que esses sujeitos de pesquisa se implicam neste território.
Na descrição hipotética estabelecida, essa implicação é “higienizada”, uma vez que acredita haver “a realidade” purista do campo de pesquisa, a qual será “transcrita” representando o que fora, fidedignamente, observado a campo, ao qual, por fim, o “sujeito da pesquisa” visita de “corpo fechado”, desatento, ou mesmo reativo, aos acontecimentos que podem atravessá-lo. Nessa descrição, tudo se passa como se houvesse um “cenário montado”, imutável e com suas peças bastante fixas e estabelecidas, que aguardam passivamente a entrada dos atores em cena (os sujeitos de pesquisa). A cartografia é um método de investigação que “[...] não busca desvelar o que já estaria dado como natureza ou realidade preexistente. Partimos do pressuposto de que o ato de conhecer é criador da realidade, o que coloca em questão o paradigma da representação” (KASTRUP; PASSOS, 2016, p. 16).
Talvez, essa cena se encaixe em situações que envolvam um serviço prestado por um carpinteiro, que vai ao local aferir as medidas de um determinado espaço, mas não por um/uma cartógrafo/a, que precisa se envolver com uma realidade existencial. Argumentarei que o conceito de diagrama desmonta uma suposta superioridade de controle das relações que porventura acontecem no intercurso da pesquisa. Vejamos como isso acontece.
Ao ler a obra de Foucault, Deleuze elabora conceitualmente o diagrama do seguinte modo:
O diagrama não é mais o arquivo, auditivo ou visual, é o mapa, a cartografia, co-extensiva a todo o campo social. É uma máquina abstrata. Definindo-se por meio de funções e matérias informes, ele ignora toda distinção de forma entre um conteúdo e uma expressão, entre uma formação discursiva e uma formação não discursiva. É uma máquina quase muda e cega, embora seja ela que faça ver e falar (DELEUZE, 2013, p. 44).
Quando Foucault evocou a noção de diagrama foi para pensar as sociedades modernas (disciplinares), nas quais o poder formalizou enquadramentos, como ficou consagrado no modelo da peste, que mapeou a população nos grandes centros urbanos. Diz Deleuze (2013, p. 44) que “todo diagrama é uma multiplicidade espaço-temporal”. Disso se pode decorrer que cada sociedade é produzida, ao mesmo tempo em que produz seus próprios diagramas. As sociedades de soberania, como as sociedades biopolíticas, se caracterizaram por diagramas muito singulares. Os arquivos e relações decorrentes que advêm de escritos e documentos, bem como de elementos televisivos, cinematográficos, midiáticos ou digitais, constituem, cada um a seu modo, redes diagramáticas. As relações que buscamos evidenciar em cada uma dessas entidades diagramáticas é que orientarão a atenção do cartógrafo no intercurso investigativo.
Uma vez que esses conteúdos sempre permitem desarranjos e novos arranjos na produção de realidade por aquele que o analisa, compor com diagramas é lidar com exterioridades que nunca se esgotam, mas se mapeiam por agenciamentos concretos que arrastam figuras transitórias. Interessa, sobretudo no diagrama, aquilo que se desalinha, que escapa ao esperado, que perde aderência das paisagens já decantadas:
[...] um diagrama é um mapa, ou melhor, uma superposição de mapas. E, de um diagrama a outro, novos mapas são traçados. Por isso não existe diagrama que não comporte, ao lado dos pontos que conecta, pontos relativamente livres ou desligados, pontos de criatividade, de mutação, de resistência; e é deles, talvez, que será preciso partir para se compreender o conjunto. É a partir das “lutas” de cada época, do estilo das lutas, que se pode compreender a sucessão de diagramas ou seu re-encadeamento por sobre as descontinuidades (DELEUZE, 2013, p. 53).
Nessas teorizações, a noção de mapa é empregue de maneira bastante distante de um uso geográfico, representacional e finito. Não deixa de ser um mapa, mas é um “mapa das relações de força, mapa de densidade, de intensidade, que procede por ligações primárias não localizadas e que passa a cada instante por todos os pontos, estabelecendo relações múltiplas e diferenciadas entre matérias e formas” (JÚNIOR; VEIGA-NETO; FILHO, 2011, p. 9).
É preciso advertir ainda, que, no momento em que se esboça um tipo de mapa, este já se decompõe e se desorganiza, de modo que se faz menos fiel ao referencial que serve de base para a construção desse percurso metodológico afirmar que se representa o tempo presente, em vez de visibilizar táticas móveis que o ensejam. Deleuze e Guattari (2012c, p. 30) já evidenciaram o caráter perdulário do mapa: “O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente [...] Um mapa é uma questão de performance”.
Por conta dessas definições afirmei, anteriormente, que cartografar está menos próximo de representar um objeto do que acompanhar um processo que pode ter múltiplas entradas. A representação do objeto por um sujeito pesquisador que o estuda remonta à perspectiva realista da ciência moderna, diferente da perspectiva construtivista, à qual este método está inclinado (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015). Além disso, a dimensão coletiva e não hierarquizante da cartografia rompe com um estatuto de superioridade do sujeito pesquisador, de modo que a adoção ao método implica na extrapolação das fronteiras entre participantes da pesquisa – pesquisador e pesquisado; bem como entre pesquisador e objeto pesquisado (KASTRUP; PASSOS, 2016, p. 18).
Acompanhar um processo também está mais próximo ao movimento foucaultiano arqueogenealógico, que escava os ditos e os saberes e os situa na posição histórica de sua condição de existência. Somado a isso, uma investigação interessada nos processos de produção de subjetividade não pode prescindir de um método formatado a priori; torna-se preciso um “ajuste de lentes e de luzes” pelas quais se olha e se compõe o corpus analítico, escolhido, nesse sentido, por certas tecnologias do olhar. Esse ajuste, contudo, não é pura escolha do sujeito, o que nos leva à próxima pista.
Pista 2: O Território cria o agenciamento.
Na conclusão do quinto volume de Mil Platôs, Deleuze e Guattari fazem uma afirmação interessante, que pode ser considerada no percurso cartográfico de pesquisa: “O território cria o agenciamento” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 232). Nas teorizações deleuzo-guattarianas, agenciamento é movimentação. O território, mesmo fragmentado e composto por elementos descodificados por todo tipo, produz certos ritmos. São pontos de vista acionados no interior de um território que colocam o pesquisador em certos estados de atenção daquilo que está por vir. Do que está em devir. Como nessa perspectiva o devir é sempre minoritário, será interessante observar aquilo que escapa das estruturas, aquilo que “vaza”, e desconfiar de formas de pensamento antecedentes à entrada no território que comporá a cartografia.
Esse aspecto da pesquisa, o das formas de pensamento que antecedem a entrada num determinado território, pode ser explorado pelo enunciado: “Foucault não é pau para toda obra” (VEIGA-NETO; RECH, 2014, p. 69). Com isso, os autores querem dizer que assim como ele serve para muitas “coisas”, em relação a outras, ele nada tem a nos dizer. Numa pesquisa “ordinária”, o delineamento do problema de pesquisa, o desenvolvimento das problemáticas, bem como das novas perguntas, que aparecem no processo de investigação, é que “convidarão” as teorias, os autores e os conceitos empregues. Mas a cartografia pede que demos num passo além. Não é possível que o/a pesquisador/a se muna por completo antes de adentrar um território, uma vez que somente em contato com ele é que surgirão novos encontros, que desmontarão o que está posto ou dado de antemão. Só os novos encontros e afectações, aquilo que nos atravessa como flechas, alterando nosso estado de espírito, proporcionarão a heterogênese, uma “bagunça” nas estruturas pavimentadas, que acreditamos sempre controlar durante uma pesquisa.
É muito comum, nas conversas informais dos processos de seleção, ou mesmo na apresentação dos projetos de pesquisa, os/as candidatos/as às vagas a editais e processos seletivos da graduação ou pós-graduação comentarem que desejam estudar certo/a autor/a, argumentando que têm curiosidade em conhecer mais sobre a sua linha de pensamento. Um exemplo desse caso é descrito por Veiga-Neto e Rech acerca de uma orientanda insistir num problema de pesquisa alheio às teorizações foucaultianas:
– Mas, professor... Será que entendi bem? O senhor está mesmo sugerindo que, neste meu projeto de pesquisa, eu devo abandonar a ideia de usar Foucault?
– Sim, é isso mesmo: tu deves esquecer Foucault! Esquece o careca! Com essa rápida e cortante resposta, eu supus ter colocado um ponto final nas pretensões da minha animada interlocutora. Mas não foi bem assim. Declarou que, mais importante do que seu problema de pesquisa, no fundo o que ela queria mesmo era estudar Foucault.
Acabara de ler Vigiar e punir e estava definitivamente “apaixonada” pelo filósofo. Insistiu em marcar uma nova reunião comigo e pediu algumas orientações de leitura. Voltou, dias depois, propondo um novo problema para investigar; surpreendi-me, ao constatar que, dessa vez, a coisa toda estava bem mais apropriada para uma abordagem foucaultiana (VEIGA-NETO; RECH, 2014, p. 69-70).
No exemplo descrito anteriormente, é Foucault quem está em questão, apenas para efeito didático. Mas poderia ser qualquer autor/a que instigasse a pensar essa perspectiva totalizante de pesquisa, isto é, a da escolha de autores/a antecedendo a problemática que se quer investigar. Essas situações inverteriam o que propõe a cartografia, isto é, partiriam da premissa inversa de que o agenciamento precederia o território. Um engodo, como demonstrado nos argumentos anteriores.
Esse alerta não deve ser mal compreendido, num sentido de que se deve abandonar, de uma vez por todas, o interesse por ler determinado/a autor/a e suas teorizações (no trabalho citado, Veiga-Neto narra, inclusive, que sustentou a aposta da acadêmica em questão em usar Foucault, numa proposta readequada). Trata-se de aprender a lição: nenhum autor é “pau para toda obra”, sobretudo quando há perigos numa determinada posição de sujeito que não quer abrir mão de uma teoria que antecede os agenciamentos, isto é, quando sua pesquisa, de fato, atinge velocidade e movimento, e o “puritanismo” de determinados campos de pesquisa, de autores e teorias, deixam de fazer sentido e podem ser considerados dispensáveis...
Em síntese, neste percurso cartográfico, não basta conhecer, mas implicar-se num território existencial, de modo que é a experiência concreta quem tece, num entrecruzamento contínuo, a discussão conceitual que cada território solicitará (ALVARES; PASSOS, 2015).
Pista 3: Transformar-se para conhecer, em vez de conhecer para transformar-se
A cartografia pressupõe que não é porque algo está presente que, necessariamente, esteja visível: “[...] se trata de transformar para conhecer, e não de conhecer para transformar a realidade” (PASSOS; BARROS, 2015, p. 18). Nesse postulado, há um direcionamento metodológico contrário ao momento cartesiano teorizado por Foucault e numa proximidade maior a uma perspectiva que reconhece que o sujeito se transforma no percurso de aquisição da verdade ou produção de conhecimento.
Quando “mergulhou” nas sociedades gregas antigas para pensar o presente, Foucault nota que uma série de práticas haviam sido eclipsadas. A modernidade, e sua episteme, inaugura uma forma de ser sujeito que passa a acessar a verdade, sem que, para isso, necessite transformar a si mesmo. A este tempo-espaço, Foucault (2010) nominou de momento cartesiano, como o próprio nome sugere, influenciado fortemente pelas ideias descritas em Meditações Metafísicas, do filósofo René Descartes.
Nessa configuração moderna asséptica e diametralmente oposta aos antigos, o sujeito não precisa transformar a si mesmo (epiméleia heautoû) ao entrar em contato com a verdade dos saberes, uma vez que passa a acessá-los por intermédio de condições objetivas e formais. Não há mais conversão de si em outra coisa, há apenas o acesso a “blocos de verdade” produzidos no curso da história. Neste intercurso o sujeito não é posto em questão, haja vista que não há ascese, mas, tão somente, aplicações e utilidades.
Essa configuração moderna asséptica orienta uma diretriz que pode ser referida por abordagem clássica da ciência. Tal configuração é dificultadora no plano de criação do qual nasce a paisagem que habitará o corpo do/a cartógrafo/a.
A abordagem clássica da ciência, pautada numa política cognitiva representacional, pressupõe sujeito e objeto como polos prévios ao processo do conhecer e busca leis e princípios invariantes; supõe que científico é aquilo que pode ser reproduzido com os mesmos resultados e garantido por um observador isento ao objeto de estudo. Nessa perspectiva, a experiência do pesquisador está excluída.
Para nós, interessa o acesso a um estofo diferente daquele proveniente de uma observação isolada daquilo que observa. Importa detectar a trama que acompanha o ato de conhecer e de criar um mundo, pois assim nos aproximamos do conhecimento concreto e articulado que tem efeitos políticos, éticos e estéticos (POZZANA, 2016, p. 47-48).
A cartografia propõe uma ruptura com essa noção objetivadora e asseptizada do sujeito, como propuseram o cogito cartesiano, o individualizado si mesmo kantiano ou o sujeito “hermético” do humanismo. Sem que reivindique uma leitura anacrônica de retorno aos gregos, a cartografia pressupõe um sujeito que se autoconstrói por meio de práticas e de técnicas, um sujeito aberto ao mundo, não submisso à crença de que o si mesmo tem início ou fim na sua própria pele. Há autores orbitando essas linhas que preferem, inclusive, falar em processos de subjetivação, em vez do sujeito (que pressupõe algo rijo, imutável e acabado), uma vez que o território se faz na imanência, num conjunto de relações por vir.
Se, como definido anteriormente, o diagrama é entendido como um mapa das relações de força, de densidade, de intensidade, que estabelece relações múltiplas e diferenciadas entre matérias e formas de expressão díspares, o mesmo só pode ser experimentado com um “deslocamento do olhar daquilo que sempre foi considerado central” (JÚNIOR; VEIGA-NETO; FILHO, 2011, p. 9). E esse deslocamento do olhar implica, necessariamente, um deslocamento da sujeição. Por compreender que o/a pesquisador/a transforma a si mesmo na imersão da pesquisa cartográfica, também faz mais sentido a inversão considerada nas próximas pistas, apresentadas a seguir.
Pista 4. hódos-metá, em vez de metá-hódos
Como nesta linha se entende que o sujeito e, portanto, o pesquisador está por se fazer em cada etapa da pesquisa, outra implicação do método cartográfico acaba por ser, quase como consequência, a de que “o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas” (PASSOS; BARROS, 2015, p. 17), isto é, não se trata de caminhar para alcançar as metas prefixadas do metá-hódos (metá – reflexão, raciocínio, verdade; hódos – caminho, direção), por isso faz mais sentido a inversão hódos-metá.
A cartografia não se volta a acompanhar qualquer segmentaridade de mundo e, para que compreendamos isso, talvez seja interessante retomar as conceituações de Deleuze e Guattari (2012b) acerca das linhas. Na concepção desses filósofos, o mundo é segmentado, e suas relações operam em três tipos de linhas: as linhas de segmentaridade dura, as linhas de segmentação maleável e as linhas de fuga. As duas primeiras primam pela territorialização, estratificação, significação e tentam definir as coisas, dar a elas estatuto de “isso é isso”, “aquilo é aquilo”. Propõem uma rota segura, orientando que não precisemos nos sentir alheios no mundo.
Enquanto as últimas, as linhas de fuga ou de ruptura, são linhas de desterritorialização pelas quais o pensamento foge e “[...] faz fugir todo um sistema como se arrebenta tubos. Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 47). As linhas de fuga, justamente pelo seu caráter desterritorializado, fazem “dissolver” as estruturas, e, por isso, não é fácil identificar as imagens e as novas configurações de mundo que propõe. De acordo com Oliveira, é a atenção e “o primado das linhas de fuga que a cartografia convoca quando elas parecem tão sufocadas diante da dominância, da regularidade e do controle que impregnam os territórios” (OLIVEIRA, 2014, p. 290).
Pista 5. Os objetivos são construídos ao longo da experimentação
Da pista apresentada anteriormente, decorre que também os objetivos de uma pesquisa são construídos durante o processo de observação, não estando previamente estabelecidos (PASSOS; BARROS, 2015). Além disso, a cartografia não visa isolar o objeto de suas articulações e conexões com o mundo:
[...] Ao contrário, o objetivo da cartografia é justamente desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente. Para isso é preciso, num certo nível, se deixar levar por esse campo coletivo de forças (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 57).
De que modo perceber quais metas e objetivos serão mais condizentes com o diagrama construído no intercurso da investigação? Será a atenção movida pela sensibilidade do/a cartógrafo/a aos acontecimentos que fará com que se perceba uma efetiva “aderência” entre aquilo que está no plano intensivo das forças e aquilo que “está fora do lugar”.
PISTA 6. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo
Ainda de acordo com Passos, Kastrup e Escóssia (2015), o funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo é orientado por um tipo de bússola. Trata-se de um momento em que “a atenção não busca algo definido, mas torna-se aberta ao encontro” (KASTRUP, 2015, p. 38). Encontro, aqui, não significa somente o conhecimento e o contato com os textos, mas reconhecê-los – nas relações de poder, em sua textura, na memória e experimentação imanentes a eles – em seu caráter de contraconduta e, por isso mesmo, em seu potencial estético de análise, lembrando que a cartografia não visa ceder ainda mais atenção aos processos já pavimentados, mas aos minoritários.
Nesta primeira fase, a atenção do cartógrafo assume um “caráter flutuante” (KASTRUP, 2015). Nesta fase, é como se ocorresse um mergulho nas intensidades presentes no território com o qual se troca aderências: “A atenção não busca algo definido, mas torna-se aberta ao encontro” (KASTRUP, 2015, p. 38) e “Tudo caminha até que a atenção, numa atitude de ativa receptividade, é tocada por algo” (KASTRUP, 2015, p. 42).
Na sequência, torna-se preciso compor com algo que já é, de certo modo, composto, num movimento de instauração, isto é, “dar língua para afetos que pedem passagem” (ROLNIK, 2007, p. 23). Após a atenção flutuante, que permite trocas e experimentações de certas materialidades, adentra-se em uma nova fase, em que o/a cartógrafo/a deve fazer certas escolhas.
[...] quando sob suspensão, a atenção que se volta para o interior acessa dados subjetivos, como interesses prévios e saberes acumulados, ela deve descartá-los e entrar em sintonia com o problema que move a pesquisa [...].
As experiências vão então ocorrendo, muitas vezes fragmentadas e sem sentido imediato. Pontas do presente, movimentos emergentes, signos que indicam que algo acontece, que há processualidade em curso (KASTRUP, 2015, p. 39).
Não basta reconhecer um objeto, mas é preciso saber servir-se dele num exercício de intensa percepção. Por isso:
[...] no caso do cartógrafo, é nítido que não pode se tratar de reconhecimento automático, pois o objetivo é justamente cartografar um território que, em princípio não se habitava. Não se trata de se deslocar numa cidade conhecida, mas de produzir conhecimento ao longo de um percurso de pesquisa, o que envolve a atenção e, com ela, a própria criação de territórios de observação (KASTRUP, 2015, p. 45).
Foi a ação de cartografar um território inabitado que me permitiu reconhecer que se tratou de um território existencial criado por forças não reativas e não conformadas aos territórios dominantes, estes já moldados pelas estratégias do poder totalitário. Por isso, durante o intercurso da cartografia, nossa atenção é tocada por algo, num dado momento: “O que se destaca não é propriamente uma figura, mas uma rugosidade, um elemento heterogêneo” (KASTRUP, 2015, p. 42).
O território (existencial) “não se constitui como um domínio de ações e funções, mas sim como um ethos, que é ao mesmo tempo moradia e estilo”; na caracterização desses ethos, “os sujeitos, os objetos e seus comportamentos deixam de ser o foco da pesquisa, cedendo lugar aos ‘personagens rítmicos’ e às ‘paisagens melódicas’” (ALVARES; PASSOS, 2015, p. 134). É preciso observar tais personagens e paisagens no presente de sua sobrevivência, uma vez que território é, sempre, lugar de passagem, “está sempre em vias de desterritorialização, ao menos potencial, em vias de passar a outros agenciamentos, mesmo que o outro agenciamento opere uma reterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 144).
Apresentadas essas pistas, que, lembrando, não esgotam outras possibilidades de investigação cartográfica, detenho-me, na próxima e última seção, em evidenciar de que modo as mesmas “funcionaram” durante meu processo de construção do corpus analítico.
Fragmentos de uma pesquisa cartográfica
Nesta seção final, buscarei descrever uma maneira tática por meio da qual as pistas do método da cartografia possibilitaram a construção do corpus analítico construído em minha tese de doutoramento[5]. Acredito que, após apresentadas as pistas, meus/minhas leitores/as identificarão, nesta última parte, uma sobreposição delas “funcionando” na percepção e construção do corpus analítico.
A produção desse corpus analítico decorreu, então, de um intenso processo de procura e imersão nos textos encontrados, em seu complexo conteúdo discursivo que, ora foram encontrados, ora me encontraram, dado seu “alto” ou “baixo” potencial de afecção. Como a internet é reconhecidamente a máquina de nossos tempos (DELEUZE, 1992), selecionei elementos discursivos, textuais e imagéticos, disponíveis em páginas diversas da internet: textos jornalísticos digitais, matérias de plataformas educacionais, páginas profissionais de artistas, dentre outras, compondo um conjunto materializável de possíveis elementos analíticos. Não fixei de antemão uma categoria textual para investigar, priorizando possíveis áreas distintas que pudessem ser encetadas pelos “tentáculos” da ecogovernamentalidade.
Fui imerso por uma série de textos – enunciados, discursos e relações de força – entre os quais selecionei aqueles que se caracterizaram, em minha leitura, como estéticas da existência construídas em um formato diferente das relações guiadas pela ecogovernamentalidade.
Evidentemente, mantive os elementos das fases arqueológica e genealógica, mas identificar as estéticas da existência tanto nas regularidades convergentes e entrecruzáveis entre elas, quanto nas descontinuidades e estridências com as formas de vida hegemônicas foi fator decisivo na manutenção dos elementos que mantive para a análise. Nesses elementos materiais que selecionei, finalmente, para a análise, identifico processos de subjetivação de diversas formas e operando em setores diversos, como no âmbito educativo, na esfera política e nas artes. Por utilizarem tecnologias capazes de operacionalizar campos potentes de pensamento, chamarei o resultado dessas estéticas de territórios existenciais, terminologia já apresentada neste trabalho.
Deste modo, o conhecimento de relações que caracterizam o exercício da ecogovernamentalidade no tempo presente foi, não somente de suma importância, mas uma condição sine qua non para que minhas buscas não assumissem um caráter vago de “tatear no escuro”.
Ainda assim, num primeiro momento, a atenção do cartógrafo no caminho investigativo assume um caráter mais flutuante, cuja preocupação se dá, nesse momento, no conhecimento de fragmentos desconexos – textos que enredam outros textos num movimento vasto de conexões.
Por fim, um dos critérios adotados para a construção dos dados analisados foi a preferência por textos que se caracterizassem por estéticas da existência diante das formas de poder instituídas pela ecogovernamentalidade. Isso significa que recusei, como procedimento, a opção por categorias a priori, ou a análise com base nas formações discursivas em comum entre os textos. Nesse sentido, os dados selecionados para análise transversalizam pelas áreas da educação, jornalismo e arte, pois encontrei nessas materialidades modos de vida outros, orientados por um regime de sensíveis que pervertem e dessacralizam o domínio institucionalizado nos modos de reger a vida nas relações empreendidas com o meio ambiente.
Páginas da internet cujo título alude a terminologias como ‘meio ambiente’, ‘ecologia’, ‘educação ambiental’ etc. não foram mantidas na análise, uma vez que não identifiquei, nesses lugares, estéticas da existência, ruptura com as formas totalitárias de poder da ecogovernamentalidade, por exemplo, as páginas “Discutindo ecologia”, “Cultura, Cidadania e Meio Ambiente” e a própria página oficial do Ministério do Meio Ambiente, todas elas ligadas à rede social Facebook.
As primeiras páginas citadas centralizam sua preocupação na divulgação científica, reportando-se notícias que dizem respeito ao problema dos canudos plásticos, do desmatamento, extinção de espécies, papel dos ambientalistas na história brasileira, divulgação de cursos, dentre outros assuntos. As notícias e reportagens, em sua maioria, são escritas em terceira pessoa, com ênfase num papel denuncista e policialesco. Já a página oficial do Ministério, foca em publicações que divulgam informações a respeito da quantidade de visitações que recebe um parque nacional e a importância das unidades de conservação para a manutenção de áreas verdes, além de visibilizar o papel de datas comemorativas, como o dia do agente de defesa ambiental. Essas páginas, muito similares, em conteúdo, a outras páginas e blogs buscados, tem textos curtos, acompanhados de imagens, impossibilitando a afirmação de que há subjetividades em trânsito, sendo repensadas num exercício imaginativo. Seu conteúdo discursivo é majoritário, faz ecoar instituições que estão em vigor ditando o que “é certo e errado”, numa perspectiva macro e moralista, que reiteram papéis de sujeição já bastante clonados e multiplicados, critérios suficientes para não comtemplar tais materialidades numa investigação cartográfica.
No segundo eixo analítico, importa anunciar que optei por setores não serializados da arte, da arte majoritária, institucionalizada nos territórios que a validam como tal, os museus, as bienais, os grandes circuitos das exposições e dos críticos de arte. Também não foi minha intenção fixar-me a uma escola artística, a uma classificação ou corrente já nomeada pela história.
O corpus analítico/diagrama construído se caracterizou pelos escritos jornalísticos de Rodrigo Barchi e Eliane Brum, cuja ênfase recaiu no que nomeei como “escrita de si”; e nas instalações artísticas de Roberta Carvalho e Eduardo Srur, cuja ênfase recaiu no que nomeei como “máquinas estéticas”. Caracterizadas pela proximidade com a micropolítica e microfísica dos poderes, apostei nessas materialidades como territórios existenciais, isto é, narrativas não assimilacionistas que escapam de ecologias policialescas e normativas incitadas pela ecogovernamentalidade. Optei por citar tais materialidades e não as discutir neste manuscrito, pois o objetivo aqui fora o de enfatizar o caminho cartográfico percebido para chegar a essas materialidades. Citar breve ou parcialmente essas textualidades ou obras, incorreria em não levar em conta sua complexidade ou potencial de afectação.
Considerações finais
Busquei apresentar seis pistas do método da cartografia, salientando que elas não esgotam a totalidade e as formas de se “fazer uso”. De tudo o que foi apresentado, detenho-me e arrisco-me a comentar, já neste desfecho, que, de alguma forma, é a cartografia quem escolhe o/a pesquisador/a. Haja vista que cartografar é acompanhar processos de fuga, movimentações por vertigens, atinadas pelas linhas de fuga, há processos de subjetivação mais e menos aderentes a essa tarefa. Se o desejo for movido por acompanhar categorias já sedimentadas – que, provavelmente, serão transformadas em dados, tabelas e gráficos – a cartografia pode ser uma “dor de cabeça”. Jogue essa bússola fora se você não tiver o perfil de alguém que “mergulhará de cabeça” no caos, e se sente confortável com as posições identitárias que acredita controlar. Como um enólogo ou um perfumista, que treinam suas papilas e narinas, a cartografia exige sentidos aguçados, o que, invariavelmente, vai pôr o sujeito da pesquisa “de ponta cabeça”.
Referências
ALVARES, Johnny; PASSOS, Eduardo. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015.
BARROS, Laura Pozzana de; KASTRUP, Virgínia. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015.
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[1] Na composição das pistas aqui apresentadas e discutidas, os dois volumes da obra “Pistas do método da cartografia”, o primeiro, tendo como subtítulo “pesquisa-intervenção e produção de subjetividade” (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015) e o segundo, tendo como subtítulo “a experiência da pesquisa e o plano comum” (PASSOS; KASTRUP; TEDESCO, 2016), foram indispensáveis. [2] De acordo com Passos, Kastrup e Escóssia (2015), no delineamento do método da cartografia/cartográfico, como pesquisa de intervenção e produção de subjetividade, há pistas a serem seguidas, de modo que não há uma sequência linear de passos, mas escolhas e usos que se fazem no acompanhamento de um processo orientado pela atenção, necessidade e, até, sensibilidade do cartógrafo. Informo que não usufruí de todos os textos desta mesma coletânea, uma vez que há direcionamentos que se inclinam para a área de psicologia clínica, foco que não interessou a esta investigação. [3] Com exceção da Análise de Discurso de clave foucaultiana, que abre mão da linguística clássica para analisar os enunciados no interior de um contexto mais amplo. [4] Por uma questão de estrutura do manuscrito, optei por uma seleção das pistas julgadas imprescindíveis no intercurso do método cartográfico. Destaco a meus/minhas leitores(as) que o primeiro (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA) e o segundo volume (PASSOS; KASTRUP; TEDESCO) do “Pistas do método da cartografia” totalizam dezesseis pistas, o que seria inviável considerar neste espaço físico. [5] A pesquisa completa pode ser acessada na página do Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática (PECEM-UEL) por meio do link: http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000225754:
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