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Vamos falar sobre a formação da classe operária inglesa? Mas sem pensar em categorias!

Atualizado: 4 de nov. de 2021

Por David Pereira Faraum Junior

 

Londrina, 31 de março de 2021, a reunião teve como objetivo discutir a obra “A formação da classe Operária inglesa: A árvore da liberdade” de Thompson. O interesse do Grupo de Estudos Culturais das Ciências e das Educações (GECCE) de ler a obra de Thompson surgiu da necessidade de aprofundar as discussões em torno da formação das bases dos Estudos Culturais, já que, em leituras anteriores, tivemos o contato com artigos que apresentavam e discutiam as ideias dos autores fundantes: Richard Hoggart, Raymond Williams e Edward Palmer Thompson.

Na abertura das discussões, ficamos sabendo pelo coordenador do GECCE que era a primeira vez que essa obra fundante era discutida em uma reunião. Oportunidade e tanto para nós, que participávamos do encontro nesse dia.

“A formação da Classe Operária Inglesa: A árvore da liberdade” está dividida em cinco capítulos, discutidos um a um. Todos os participantes puderam interagir a qualquer momento nas reuniões do grupo, ou quando o coordenador perguntava algo direcionado a alguém.

Já de início como responsável pela mediação, pontuei sobre a forma como Thompson escreve suas histórias, as “histórias dos de baixo” (CEVASCO, 2003, p. 73). As histórias dos tecelões de malhas, dos meeiros, dos artesãos, do fazer-se da classe trabalhadora, que não surgiu em uma hora determinada assim como o Sol, mas se fez/faz presente no seu próprio fazer-se.

Thompson deixa de contar as histórias dos grandes eventos, dos “grandes” personagens, para fazer uma história cultural, preocupada em retratar a formação da classe operária inglesa a partir de "pequenos" personagens, acontecimentos cotidianos, como por exemplo, reuniões nas tabernas inglesas. Sua historiografia não se prende somente aos documentos, mas também para a história do monumento das relações humanas. Portanto, Thompson altera a questão metodológica, olhando para o mundano, horizontalizando as análises e os olhares.

O prefácio da obra gerou grande discussão e apontamentos, ficamos a maior parte da manhã nele, tentando responder à pergunta: O que é classe?

Thompson (1987) argumenta que a classe operária não é uma estrutura ou uma categoria, ela é formada no seu próprio fazer-se. Nas palavras do autor a classe é

[...] um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto da matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma "estrutura", nem mesmo como uma categoria, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas (THOMPSON, 1987, p. 9).

Neste sentido, para Thompson (1987), não podemos definir classe, mas sim falar como ela foi formada, quais foram os jogos de poder, quais foram as condições simbólicas que fizeram emergir a classe operária.

Já nas primeiras linhas do primeiro capítulo, Thompson (1987) apresenta seu olhar horizontalizado e nos leva para as reuniões realizadas nas tabernas frequentadas pelos operários ingleses, isto porque para ele “não podemos entender a classe a menos que a vejamos como uma formação social e cultural, surgindo de processos que só podem ser estudados quando eles mesmos operam durante um considerável período histórico” (THOMPSON, 1987, p. 12), que, no caso do volume I da sua historiografia, foi de 1780 a 1832.

O primeiro encontro da Sociedade Londrina de Correspondência (SLC) aconteceu no começo do ano de 1792 em uma taberna na região da Strand. Naquela noite, oito dos nove participantes tornaram-se membros fundadores, que, em meio ao jantar de costume, com pão, queijo e cerveja, conversavam sobre a vida difícil dos altos preços dos produtos básicos e da Reforma Parlamentar. Quinze dias depois, registraram a presença de vinte e cinco membros e, seis meses depois, já contabilizavam mais de 2000 pessoas (THOMPSON, 1987).

Participavam das reuniões da SLC artesãos, lojistas, artífices mecânicos, sapateiros, soldados, entre outros, ou seja, uma das características da SLC era a heterogeneidade. No encontro do GECCE, foi pontuado justamente que essa característica poderia estar ligada ao crescimento do número de membros da SLC, já que as reuniões estariam mais abertas às discussões devido à diversidade dos participantes.

A questão do aumento dos participantes e de sua diversidade fez emergirem, no encontro do GECCE, algumas aproximações do pensamento latouriano. Ficamos na dúvida se era Thompson (1987) ou Latour (2011; 2017) falando, isto porque alguns participantes lembraram-se do processo de arregimentação que Latour explora para discutir a produção da ciência moderna, que, segundo o autor, se baseia no recrutamento de recursos e aliados para a fabricação de fatos científicos, um movimento de assentamento de muitas referências (LATOUR, 2011), as quais combinam dois (ou mais) interesses distintos em um único objetivo composto (LATOUR, 2017). No caso da classe operária inglesa, este movimento estava ligado à luta pelos direitos de uma vida mais digna, reivindicada por meio de diversos discursos, como a denúncia do aumento dos preços dos produtos, a vida difícil no chão fabril, ou do “direito” de ser governado por representantes que nem eram escolhidos por eles (THOMPSON, 1987).

Ainda sobre a busca por aliados, discutimos no GECCE a questão, ainda não superada pelos Estudos Culturais, do papel social evidente, no sentido de haver indivíduos que operam com maior influência sobre outras pessoas; no texto de Thompson, isso aparece quando é pontuado o papel dos professores, pastores, até mesmo de obras de escritores como Bunyan e Paine, que influenciaram as ideias e atitudes do movimento operário inglês de 1790 a 1850, ou seja, mesmo as micropráticas de Thompson (1987) apresentam sujeitos/atores que produzem influência.

Nesse momento da reunião virtual do GECCE, apareceu outro conceito de Latour: os actantes, que são os atores, mediadores, os responsáveis pela ação na rede; dependendo da sua força de influência, esse ator trará mais ou menos pessoas para a rede, lembrando que tais provocadores de ação podem ser pessoas, objetos, organizações, os humanos e não humanos (LATOUR, 2011; 2017).

Com o relógio marcando quase meio dia tínhamos conseguido discutir o prefácio e o primeiro capítulo da obra de Thompson, que nos levou pelas narrativas de como a classe operária inglesa se constituiu no seu fazer-se classe, já que, para o autor, não existe uma definição para classe a não ser a “definida pelos homens enquanto vivem sua própria história” (THOMPSON, 1987, p. 12).

O fazer-se de Thompson (1987) vem na tentativa de superar o pensamento do materialismo de Marx, na medida em que não acredita que a análise deve ser estruturada; enquanto Marx tenta amarrar o conceito (buscar uma essência), tratar como uma estrutura, categoria, Thompson (1987) sugere o fazer-se a partir das relações humanas, dos hiatos, das mediações.

Uma manhã de encontro do GECCE não foi suficiente para finalizar a discussão em torno da obra de Thompson (1987) e decidimos então continuar nossos apontamentos e inquietações na semana seguinte.

No dia 7 de abril de 2021, mais uma vez nos reunimos virtualmente para terminar a discussão dos capítulos faltantes: O cristão e o demônio, As fortalezas de Satanás, O inglês livre de nascimento e Plantando a árvore da liberdade.

Este encontro foi marcado por várias aproximações entre as micro-histórias da classe operária de Thompson e alguns episódios vividos pela sociedade atual, isto porque, no segundo e no terceiro capítulo, Thompson (1987) aborda as influências das religiões protestantes na vida do operariado. Sabemos que, até os dias atuais, as igrejas ainda se constituem como o que Foucault chama de instituições de sequestro (VEIGA-NETO, 2017), que são aquelas que utilizam técnicas de disciplinamento para a docilização do corpo; e aqui vale pontuar que essa docilidade está mais ligada à questão econômica do que ao castigo, ao terror.

Thompson (1987) argumenta que ocorreu um retraimento na organização dos trabalhadores ingleses, devido a movimentos de ordem religiosa, como o metodismo, que atacava a religião anglicana e a Dissidência[1]. Esses movimentos metodistas pregavam que todos deveriam pacientemente sofrer no mundo até o juízo final.

Esse cenário de quietismo político teve como influência as ideias da obra de Bunyan O Progresso do Peregrino, que era considerado por muitos, assim como para o cartista Thomas Cooper, o “livro dos livros” de Bunyan (THOMPSON, 1987). O título do livro de Bunyan nada tem a vem com progresso, haja vista que, para o autor, os operários tinham que se contentar com suas vidas de sacrifícios sem acesso à propriedade; a vida no paraíso de Deus servia de consolo e também de compensação emocional pelos sofrimentos e injustiças sofridos pelos pobres.

Ainda sobre o progresso do peregrino, Thompson (1987) nos alerta sobre a ambivalência da linguagem do conformismo entre a proteção e a provação divina.

Quando o contexto é favorável e surgem as agitações de massa, evidenciam-se melhor as energias ativas da tradição: o Cristão luta contra o Demônio no mundo real. Em tempos de derrota e apatia de massa, o quietismo ascende, reforçando o fatalismo dos pobres: o Cristão sofre no Vale da Humilhação, longe da trepidação dos coches, abandonando a Cidade da Destruição e buscando o caminho para uma espiritual Cidade do Sião (THOMPSON, 1987, p. 34).

O discurso ambivalente também era praticado pela Dissidência, como lembrou um dos participantes do GECCE. Ao mesmo tempo em que os dissidentes pregam uma ruptura para instituir uma outra ordem, buscam também uma hegemonia; em outras palavras, os dissidentes se movimentavam pela transformação das virtudes e, dependendo da situação, alteram o discurso para o bom ou para o ruim.

Na disputa religiosa contra o demônio, no caso a Dissidência, os Senhores (segundas-intenções; do amor ao dinheiro) e os operários desobedientes, o vencedor foi o Metodismo que com sua influência política “estabilizadora” conseguiu até impedir a revolução na Inglaterra em 1790 (THOMPSON, 1987). Sua vitória está associada à defesa do mercantilismo utilitário, à disciplina laborativa, ou seja, a igreja tinha como objetivo cuidar das almas dos pobres para ensinar-lhes a obediência e a laboriosidade, o Cristão obediente que encontrará o reino de Deus.

No final do século 18, os pilares do Metodismo foram perturbados pelas tendências democráticas. Entre os personagens democratas, Thompson (1987) destaca os “metodistas de Tom Paine”, leitores da obra Direitos do Homem, que mesmo sofrendo julgamentos e perseguições, ajudaram na mobilização e articulação dos operários ingleses, os motins e a turba, que, segundo Thompson (1987), afetaram o movimento operário entre o século XVIII e o início do século XIX.

Como resistência ao controle social pregado pelas leis dos ricos ingleses, os motins eram, na maioria das vezes, constituídos de um contrato não escrito, pregado pelos populares para castigar alguns crimes, como roubo de ovelhas e de roupas ao ar livre, e perdoar outros crimes, como caça e pesca ilícitas, sonegação de impostos, fuga do recrutamento etc., haja vista que a dominação dos ricos se concretizava por meio da elaboração de leis, condenações, penas capitais de crimes contra a propriedade, os roubos e as rebeliões industriais (THOMPSON, 1987).

Thompson (1987), ao nos apresentar os diversos segmentos religiosos e as diversas forças enunciativas, nos mostra novamente que a classe operária se constitui nos seu próprio fazer-se. Perguntamo-nos se é possível alguma semelhança entre as mobilizações da classe operária inglesa descrita por Thompson e a classe trabalhadora atual.

Um dos participantes pontuou que existem diferenças e semelhanças. A diferença recai sobre o fato de que atualmente se tem um movimento de desarticulação, já que não existe uma moralidade em comum. Por outro lado, existe uma semelhança, uma certa materialidade do discurso, de criar movimentos para a luta contra as injustiças, e o que se tem é a tentativa de dissipar essa articulação, tentativa de dissolução, de polarização.

Outro apontamento levantado na reunião virtual do GECCE foi que atualmente a noção de operário está dissolvida, graças ao enunciado do empreendedorismo, às plataformas de emprego como a uberização, aos influenciadores digitais, aos canais do Youtube, ao discurso de que você faz seus próprios horários, que pode chegar a 12-18 horas por dia, ou seja, o empreendedor voltando ao século XVIII com um novo nome, passando de operador clássico para operador plataformizado.

Como essa materialidade se constituiu? Quais condições materiais nos levam para essa realidade?

Para responder a essas questões, segundo o coordenador do GECCE, falta-nos o que Thompson (1987) realizou nas análises minuciosas e exaustivas da formação da classe operária inglesa: uma arqueologia para estudar as questões sociais de desigualdade, um estudo sobre a tradição que perpetua discursos, fazendo com que acreditemos que tudo isso é verdade, que é essencial, numa origem, e não que foi inventado e que desta forma pode ser discutido, a produção nos hiatos, onde não há nada e onde se criam as coisas.

Ainda sobre a nossa realidade atual, pontuamos sobre a paralisação dos movimentos de resistência, cuja causa, dentre várias, está na controvérsia entre o trabalho e a saúde, haja vista que estamos vivendo a pandemia do coronavírus. Tal controvérsia é muito utilizada pelo presidente do Brasil em seus discursos, que, ao defender o trabalho e o sustento, ataca as políticas de lockdown e da vacinação. Além disso, com todo esse discurso negacionista, estamos sendo empurrados para a tradição, defendendo a ciência com C maiúsculo. Olhe só!

Como Thompson (1987) nos tocou, nos fez olhar para nossa realidade, não pensando em respostas, mas levantando discussões, tantas discussões e inquietações que a segunda manhã de discussão passou e não conseguimos discutir o último capítulo[2]. Como o tempo passa, e em falar nele, durante o grupo surgiu um possível problema de pesquisa de doutorado: como entender o conceito de tempo em Thompson? Fica a dica, caso você queira entrar para nosso grupo!


Referências

CEVASCO, M. E. As Dez Lições Sobre os Estudos Culturais. São Paulo: Boitempo, 2003.

LATOUR, B. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. São Paulo: EDUSC, 2017.

LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: UNESP, 2011.

THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa: A Árvore da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

VEIGA-NETO, A. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.


Notas

[1] Thompson (1987) chama de Dissidência as seitas religiosas não anglicanas.

[2] No último capítulo, Thompson (1987) me fez respirar, ver uma luz no fim do túnel ao pontuar as influências de Paine no florescer da árvore da liberdade. A organização da multidão operária, em 1794, já se chegava a 200 mil pessoas, a criação do jornal semanal Sheffield Register, que divulgava ideias democráticas em formato de artigos originais. Além disso, a ampliação dos Direitos do Homem para Os Direitos da Natureza, com a distribuição justa da propriedade, me fez recordar das políticas de reforma agrária e do Movimento dos Sem Terra (MST) do Brasil.

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